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domingo, 30 de março de 2014

DA SÉRIE: CURIOSIDADES SOBRE AS "TRÊS MARIAS DA BARRAGEM" - A VIDA ADULTA (FINAL DA SÉRIE)

 Parte de trás da casa do senhor Chico Capote, ambiente utilizado pelas “Três Marias da Barragem” todas as noites de terça-feira. Fonte: Arquivo pessoal de Maria Clara Almeida Melo. 22 de janeiro de 2013.



Ao terminar o culto, elas não voltam para casa imediatamente, permanecendo na cidade durante parte da madrugada, como Ene nos conta:

Elas vão pra casa do Senhor Chico Capote; tem um murinho lá, elas chegam, entram, dormem em baixo de uma pia. [...] Desde que elas começaram a andar por aqui que elas vão dormir lá. [...] Quando é duas horas da manhã elas tiram pro sítio de novo.[1]

Esta imagem nos proporciona uma visão incrível sobre a utilização dos espaços inabitáveis, costumeiramente, mas que na visão das “Três Marias da Barragem” parecem naturalmente confortáveis e seguros. Uma mesa de madeira, uma cadeira velha e pias de lavar roupas; um lugar comum, próprio para atividades corriqueiras, mas que é adaptado, taticamente, pelas “Três Marias da Barragem” :

A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como diz von Büllow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. [2]

Isso quer dizer que, por mais que as “Três Marias da Barragem” se isolem do Outro, trate-os como “inimigo”, no sentido de se colocar como diferente e de se distanciar das pessoas que compõem a sociedade em geral, elas precisam desse Outro até para se excluírem, ou seja, o espaço produzido e habitado pelos estrangeiros, aos olhos delas, também pode ser utilizado por elas, porém, com outros usos. Neste caso da foto, por exemplo, utilizam esta área da casa que não é habitada à noite, para que seja uma espécie de quarto, onde elas dormem – em baixo da mesa e próximo às pias (onde podemos observar os lençóis nos chão) – e se protegem do frio e das armadilhas da madrugada.

  Estudar, então, a vida destas três mulheres é ter no pioneirismo de um trabalho os desafios que o cercam, tornando o conhecimento adquirido bem mais significativo. É perceber o quanto nossa sociedade é heterogênea, com hábitos adquiridos por meio das experiências cotidianas, gerando identidades culturais diversificadas, que só enriquecem o convívio social. E, além de tudo isso, é entrar em contato com os discursos daqueles que tiveram algum tipo de relação com as “Três Marias da Barragem”, possibilitando a problematização dessas memórias. Memórias estas que Le Goff [3] define como conjuntos de lembranças absorvidas através das vivências e do foi que dito sobre essas vivências, de modo que estes conjuntos são compostos por recortes feitos pela mente de acordo com o que ela julga ser importante para ser mantido. Então, as opiniões expressas a respeito das “Três Marias da Barragem”, bem como a maneira na qual os acontecimentos que as envolveram ocorreram, foram primordiais para traçar um perfil bibliográfico desmistificador, respondendo indagações e instigando a busca por mais informações sobre tudo que remeta a essas mulheres.
Trabalhar com as memórias é algo delicado, porém prazeroso e indispensável, afinal, como diz Antonio Brasileiro:
Um dia, tudo será memória. As pessoas que andam naquela rua, as gentis, as sábias, as más, todas, todas serão memória; o mendigo que passa sem o cão, o ginasta, a mãe, o bobo, o cético, a turista, Deus, inclusive, regendo o fim das coisas memoráveis, também será memória. Deus e os pardais. Os grandes esqueletos do museu britânico e todo sofrimento serão memória. Eu, sentado aqui, serei só esses versos que dizem haver um eu sentado aqui.[4]

Portanto, faço da biografia problematizada das “Três Marias da Barragem”, fruto das memórias de alguns pauferrenses, também memória, afinal, a História e a Memória estão intrinsecamente ligadas, tornando a História uma Arte: a arte de reviver, rememorar e reescrever.

Vanêssa Freitas



[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Pau dos Ferros/RN, 8 de jul. de 2013.
[2] CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: A invenção do cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p 100.

[3] LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: ______. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão, et all. 2. ed. Campinas: UNICAMP, 1992. p. 525 – 539.
[4] BRASILEIRO, Antonio. Um dia tudo será memória. Disponível em: http://tvcultura.cmais.com.br/provocacoes/poemas-e-textos/pgm-636-um-dia-tudo-sera-memoria-29-10-2013.1 Acessado em 05 de dez. de 2013, às 7h.

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