Ao terminar o culto, elas não voltam para casa imediatamente,
permanecendo na cidade durante parte da madrugada, como Ene nos conta:
Elas vão pra casa do Senhor Chico Capote; tem um murinho
lá, elas chegam, entram, dormem em baixo de uma pia. [...] Desde que elas
começaram a andar por aqui que elas vão dormir lá. [...] Quando é duas horas da
manhã elas tiram pro sítio de novo.[1]
Esta imagem nos proporciona uma visão incrível sobre a utilização dos
espaços inabitáveis, costumeiramente, mas que na visão das “Três Marias da
Barragem” parecem naturalmente confortáveis e seguros. Uma mesa de madeira, uma
cadeira velha e pias de lavar roupas; um lugar comum, próprio para atividades
corriqueiras, mas que é adaptado, taticamente, pelas “Três Marias da Barragem”
:
A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o
terreno que lhe é imposto tal como organiza a lei de uma força estranha. Não
tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de
previsão e de convocação própria: a tática é movimento “dentro do campo de
visão do inimigo”, como diz von Büllow, e no espaço por ele controlado. Ela não
tem, portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de
totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. [2]
Isso quer dizer que, por mais que as “Três Marias da Barragem” se isolem
do Outro, trate-os como “inimigo”, no sentido de se colocar como diferente e de
se distanciar das pessoas que compõem a sociedade em geral, elas precisam desse
Outro até para se excluírem, ou seja, o espaço produzido e habitado pelos
estrangeiros, aos olhos delas, também pode ser utilizado por elas, porém, com
outros usos. Neste caso da foto, por exemplo, utilizam esta área da casa que
não é habitada à noite, para que seja uma espécie de quarto, onde elas dormem –
em baixo da mesa e próximo às pias (onde podemos observar os lençóis nos chão)
– e se protegem do frio e das armadilhas da madrugada.
Estudar, então, a vida destas
três mulheres é ter no pioneirismo de um trabalho os desafios que o cercam,
tornando o conhecimento adquirido bem mais significativo. É perceber o quanto
nossa sociedade é heterogênea, com hábitos adquiridos por meio das experiências
cotidianas, gerando identidades culturais diversificadas, que só enriquecem o
convívio social. E, além de tudo isso, é entrar em contato com os discursos
daqueles que tiveram algum tipo de relação com as “Três Marias da Barragem”,
possibilitando a problematização dessas memórias. Memórias estas que Le Goff [3]
define como conjuntos de lembranças absorvidas através das vivências e do foi
que dito sobre essas vivências, de modo que estes conjuntos são compostos por
recortes feitos pela mente de acordo com o que ela julga ser importante para
ser mantido. Então, as opiniões expressas a respeito das “Três Marias da
Barragem”, bem como a maneira na qual os acontecimentos que as envolveram
ocorreram, foram primordiais para traçar um perfil bibliográfico
desmistificador, respondendo indagações e instigando a busca por mais
informações sobre tudo que remeta a essas mulheres.
Trabalhar com as memórias é algo delicado, porém prazeroso e
indispensável, afinal, como diz Antonio Brasileiro:
Um dia, tudo será memória. As pessoas que andam
naquela rua, as gentis, as sábias, as más, todas, todas serão memória; o
mendigo que passa sem o cão, o ginasta, a mãe, o bobo, o cético, a turista,
Deus, inclusive, regendo o fim das coisas memoráveis, também será memória. Deus
e os pardais. Os grandes esqueletos do museu britânico e todo sofrimento serão
memória. Eu, sentado aqui, serei só esses versos que dizem haver um eu sentado
aqui.[4]
Portanto, faço da biografia problematizada das “Três Marias da Barragem”,
fruto das memórias de alguns pauferrenses, também memória, afinal, a História e
a Memória estão intrinsecamente ligadas, tornando a História uma Arte: a arte de reviver, rememorar e reescrever.
Vanêssa Freitas
[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Pau dos Ferros/RN, 8 de jul. de
2013.
[2] CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: A invenção do cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1998. p 100.
[3] LE
GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: ______. História e Memória. Tradução
Bernardo Leitão, et all. 2. ed. Campinas: UNICAMP, 1992. p. 525 – 539.
[4] BRASILEIRO, Antonio. Um dia tudo será memória.
Disponível em: http://tvcultura.cmais.com.br/provocacoes/poemas-e-textos/pgm-636-um-dia-tudo-sera-memoria-29-10-2013.1
Acessado em 05 de dez. de 2013, às 7h.
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