Em contrapartida a este comportamento tão identitário, tão próprio e
peculiar, as três irmãs foram influenciadas por um de seus irmãos, o José, que
por freqüentar a Igreja Mundial do Poder de Deus, conseguiu convencê-las de que
lá seria um ambiente agradável para elas freqüentarem:
Com esse movimento todinho que não
queriam ver gente, o José, irmão delas conseguiu convencer e trazer elas pra
Igreja, e elas vem toda terça-feira, religiosamente. Elas vinham na sexta-feira,
mas deixaram pra vir na terça porque é o dia que tem a reunião da Igreja. [...]
Eles fizeram uma lavagem cerebral na cabeça delas e elas são apaixonadas e vem
toda terça-feira[1].
O fato das três mulheres romperem com esse estigma de não se aproximar,
fisicamente, das pessoas já é bastante interessante, porém, saber que elas
passaram a frequentar uma Igreja evangélica torna a pesquisa bem mais
instigante, afinal, quando crianças, elas não quiseram se confessar com o Padre
por ser uma figura masculina, e também, por não demonstrarem muita crença (ou
crença alguma) nas orações da Igreja Católica.[2] Além
disso, já depois de adultas, rejeitaram a presença do Padre quando uma das
donas das casas que elas pedem mantimentos o convidou para conhecê-las e tentar
ajudá-las:
Mamãe com que trouxe Padre Francisco aqui, porque
queria fazer por onde ajudar a elas a terem documentos pra aposentá-las. E ai,
um dia ela conversou com o Padre Francisco, ai ele disse que não conhecia as
três e que tinha muita vontade de conhecer, porque muita gente já tinha falado
delas. Ai mamãe disse que nas terças-feiras, de 6h30min às 7h da noite elas
estão passando aqui. Aí o padre veio e ficou esperando [...] Quando elas foram
chegando ai mamãe falou que o padre quer conhecer vocês. Ai pronto assustou
elas; foram embora. Isso já faz uns sete anos, mais ou menos. [3]
Então, participar de reuniões religiosas, tendo como líder um Pastor, ou
seja, uma figura masculina, já demonstra a mudança comportamental e crédula
destas mulheres, que antes diziam que não precisava rezar[4] e
agora afirmam que “Deus é quem cura”.[5]
Assim, todas as terças-feiras elas se deslocam a pé do Sítio Alencar à
cidade de Pau dos Ferros; “elas saem de casa de tarde, pra chegarem aqui
[cidade] já à noite, pra não andar na rua de dia.” [6]
Como são pedintes, fazem o mesmo percurso, sempre, passando nas casas de alguns
conhecidos, pessoas que elas já estabeleceram um certo vínculo, para pedir
mantimentos e, em cada casa se repete o mesmo pedido há muitos anos, como conta
Regilma Freitas:
Elas passam
aqui há muito tempo, há uns dez anos que elas frequentam aqui em casa. No
início elas tinham medo do claro, só ficavam no escuro; passavam ali, entravam
ali no beco e iam lá pra traz, ficavam numa casinha que tem ali atrás, no escuro.
[...] Depois elas foram se acostumando com a gente e já entram em casa do jeito
que ta aqui, no claro, há uns quatro anos mais ou menos. [...] Elas pedem massa
de milho, açúcar, café e sabão, são as coisas que elas mais pedem. [...] Elas
trazem ovos caipira pra trocar com açúcar ou outra coisa. [...] Tem uma que
conversa mais que as outras. [...] A passagem delas é rápida: elas entram, vão
ali à cozinha; o que tiver elas pedem, mas se não tiver também o que elas
querem vão embora. Cada uma quer o seu separado, porque se eu der o açúcar pra
uma, ai ela já fala pra outra “olhe que ela me deu”. Mas às vezes eu não dou
igual, dou a massa de milho pra uma, o açúcar pra outra e o sabão pra outras e
mando elas dividirem, ai elas botam cada uma em sua sacola e vão embora. [7]
Foto
2: As “Três Marias da Barragem” caminhando pelas ruas de Pau dos Ferros/RN.
Fonte: Blog Nossa Pau dos Ferros.
Nesta foto fica visível a maneira que elas se vestem, com roupas pretas, sempre
com toalhas ou lençóis, de qualquer cor ou estampa, agregados à roupa para
cobrirem os rostos; caminham por ruas escuras e com pouca movimentação, para
não serem notadas (à exceção da avenida principal da cidade), sempre juntas.
Estas andanças, trajetórias traçadas e seguidas rotineiramente, nos remetem
à conceituação dos espaços, da maneira ue as ruas, veilas e calçadas são
exploradas por estas mulheres. Assim sendo, Certeau diz que:
Os lugares
são histórias fragmentadas e isoladas em si, dos passados roubados à
legilibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que
estão ali antes com histórias à espera e permanecem no estado de
quebra-cabeças, enigmas, enfim, simbolizações conquistadas na dor ou no prazer
do corpo. [8]
Após esta rotineira passagem pela cidade, o destino é a Igreja. Então,
buscamos conversar com o Pastor Veranilton Azevedo, da Igreja Mundial do Poder
de Deus para saber como elas se comportam neste ambiente público:
Houve até uma surpresa pra nós, porque quando
observamos toda Igreja, notamos que tinha três pessoas unidas e, até então,
elas utilizam lençol pra se cobrir. Isso até despertou a nossa atenção, porque
não é de costume a gente ver pessoas com esse comportamento. [...] pra muitos
foi uma surpresa, porque elas não são de estar na sociedade, são pessoas que se
isolam e, foi uma surpresa para toda a Igreja. Teve até um dia que tiver que
chamar atenção de algumas pessoas, porque as pessoas não paravam de olhar pra
elas e isso foi criando nelas um constrangimento; então pedimos ao corpo de
obreiros pra orientar essas pessoas, pra não ficarem olhando, porque elas são
pessoas como nós, porém, com seu modo de cultura.
Nesse sentido, é praticamente impossível falar de seres marginalizados
sem mencionar a questão do pré-conceito, bem exposto por Duval Muniz [9] como
um conceito prévio, uma descrição sem qualquer esforço para entender e conhecer
o outro; nesse sentido, se encaixam os diferentes olhares sem conhecimento
apropriado da sociedade pauferrense lançados sob as reações provocadas pelas
“Três Marias da Barragem” a partir do comportamento diferenciado dessas
mulheres.
Elas não são pessoas de conversar muito, são pessoas
que são na delas, caladas, então até pra você ter um diálogo com elas, você tem
dificuldade. [...] Elas vêm, assistem a reunião, nós não interferimos ou
forçamos elas a dialogar, conversar com as pessoas; simplesmente as deixamos à
vontade. [...] Porque se elas vêm pra cá, que é uma raridade estarem em publico
[...] isso só pode ser Deus que colocou no coração delas o desejo de
participar. [...] Durante as reuniões elas ficam paradas, caladas, mas elas
ouvem [...], elas participam, mas é do jeito delas. [...] Toda reunião elas
sentam naquele mesmo local, é tanto que nós já aprendemos isso e quando senta
alguém nas cadeiras que elas sentam, nós pedimos educadamente, que ceda aquele
lugar, que é como se elas não sentassem ali era fossem um peixe fora d’agua. [10]
Freqüentar esta Igreja tem mudado bastante o pensamento destas “Marias”,
pois além de passarem a ter fé, elas disseminam essa crença por onde passam,
buscando atrair pessoas que elas conhecem para a Igreja:
Agora, depois que mamãe adoeceu, elas sempre perguntam
se ela ta bem e mandam que eu leve elas pra Igreja Mundial; elas freqüentam a
Igreja Mundial, ai tem uma que diz “mulher, leve sua mãe pra Igreja Mundial que
ela vai ficar boazinha”. Sempre, sempre elas dizem. [11]
Esta relação que elas fazem entre a cura e a Igreja, está ligada à
reunião que elas freqüentam nas terças-feiras na Igreja Mundial do Poder de
Deus, que é a noite da cura, noites estas que elas não faltam na Igreja:
Elas são pessoas que não faltam. Toda terça-feira nós
temos uma reunião chamada de “O milagre Urgente”, onde oramos forte, clamamos e
pessoas realmente se curaram; testemunhos são dados e, talvez pelos testemunhos
elas tenham sentido tocadas por Deus e elas não têm faltado. [12]
Vanêssa Freitas
[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[2]
FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista
concedida a autora. Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[3] FREITAS, Maria Regilma de. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de
2013.
[4]
FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista
concedida a autora. Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[6] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista
concedida a autora. Pau dos Ferros/RN, 8 de jul. de 2013.
[7] FREITAS, Maria Regilma de. Entrevista concedida à
autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de 2013.
[8] CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: A invenção do cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1998. p. 189.
[9] AZEVEDO, Veranilton. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN. 24 de nov. de
2013.
[10] AZEVEDO, Veranilton. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN. 24 de nov. de
2013.
[11] FREITAS, Maria Regilma de. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de
2013.
[12] AZEVEDO, Veranilton. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN. 24 de nov. de
2013.
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