Depois de alguns anos, já na adolescência das irmãs, onde a mais velha,
Lilita, contava com seus 15 anos de idade, aproximadamente, a senhora Maria
Margarida de Paiva Fernandes, educadora e evangelizadora daquela zona rural,
começou a freqüentar a casa de Raimundo e Celcina e os convenceu de permitirem
a participação dos filhos do casal nas aulas de alfabetização que a própria
Dona Margarida ministrava em sua casa, para as crianças daquela zona rural. E,
depois de muito esforço e de longas conversas, as irmãs Lilita, Antonia e
Helena, juntamente com o irmão José, passaram a ir às aulas.
Dona Margarida conta que:
Não abriam a boca durante a aula, elas vinham com um
pano amarrado aqui na cabeça e às vezes elas queriam olhar para o outro ai
dizia, olhava assim por debaixo do pano e dizia “pia onde tá fulano”,era assim,
ai cobria de novo. Elas aqui, só escreviam quando os alunos saiam. [...] Eram
uns alunos, assim, de um modo diferente; acho que se existisse especialização
naquela época elas eram de aulas especiais. [...] Trabalhava muito mais com
eles quatro, porque eu ensinava a turma, mas enquanto a turma estava toda com a
gente, as três horas, elas não olhavam pra mim, nem pra nada, era tudo ali,
encostadas na parede, só entre elas [...] no inicio tiravam a atenção dos
outros, ai se acostumaram, não ligavam nada, não. [...] Quando a outra turma
saía era que eu ia dar atenção a elas. [...] Só faziam as atividades em casa,
mas traziam certo [...] conseguiam aprender, eles eram inteligentes, muito!
Aprenderam a escrever, fazer o nome delas, do pai, da mãe [...]. [1]
D. Margarida, professora das "Três Marias" e entrevistada durante a pesquisa, ladeada por seu esposo, Sr. Expedito Fernandes.
Nesse sentido, torna-se claro que Lilita, Antonia e Helena não tinham
nenhum bloqueio mental relacionado a questão da aprendizagem, pois conseguiam
aprender o que era transmitido pela professora durante as aulas, mesmo que não
participassem, comentassem ou, até mesmo, mostrassem seus rostos durante a
aula, pois mantinham-se com o rosto coberto durante as três horas de aula e
sentavam-se em bancos isolados do restante do grupo, conseguindo colocar em
prática o aprendizado em casa, com a ajuda e a compreensão de Dona Margarida,
que entendia o comportamento delas e que não forçava nenhum tipo de mudança ou
de aproximação que elas não permitissem, por isso a aprendizagem se deu aos
poucos, de maneira gradual e sem muitas cobranças, o que não significa que ela
não cumprissem os prazos estipulados pela professora, que “passava a lição na
sexta-feira pra elas trazerem segunda e elas traziam bem direitinho; agora,
elas não faziam a pontuação direito, mas elas liam, eram bem desenvolvidas pro
comportamento delas”.[2]
Para agradá-las e mantê-las sempre por perto, freqüentando as aulas, e
tentando construir certa amizade com elas, Dona Margarida diz que, certa vez
costurou umas vestimentas para as três irmãs:
Quando elas estudavam aqui, elas usavam vestido de uma
tira amarrada num canto, outra pra outro canto, e era aquela confusão, ai eu
fui, peguei, comprei um tecido e fiz um vestido pra cada uma, fiz uma camisa
para o Zé e arrumei uma calça pra ele. Ai elas saíram daqui, era alegria
grande, numa carreira: “pi, pi a besteira”. Ai elas vestiram. Quando foi no
outro dia, pense... cortaram o vestido todinho, botaram uns pedaços de outro
pano, uma tira lá embaixo, outra lá em cima, aqueles babados, menina! E é
porque eu fiz os vestidos bem compridos mesmo, como elas gostavam, mas elas não
foram mulheres pra dizer assim: muito obrigada, ficou bonito. Não... A mãe dela
foi quem veio me agradecer. [3]
Esta reação delas com os presentes que ganharam, mostra a dificuldade que
elas deveriam ter em lidar com normas, com padrões, com o tipo de organização
social e comportamental que tinham que conviver, algo que era refletido,
também, na maneira de se vestir, pois cada uma gostava de criar seu próprio
vestido, de customizá-lo, de diferenciá-lo dos demais, uma maneira de
transgredir as regras da sociedade, mesmo inconscientemente. Ou seja, pode-se
analisar este tipo de comportamento através dos estudos de Foucault[4] ao
abordar a sociedade de controle, permeada por padrões, vigilância e punições,
ou seja, transgredir as regras, mesmo que de maneira inconsciente e nada
intencional, é correr o risco de serem punidas pela sociedade em geral por meio
da exclusão e da rejeição. Porém, o que fica mais claro ao considerarmos este
comportamento diferenciado das três irmãs é que elas, desde muito cedo,
desenvolveram o que Michel de Certeau[5]
chama de táticas e estratégias para conviveram com as pessoas que as cercavam,
pois por mais que pareçam estáticas, pelo fato do cotidiano remeter-se de
alguma forma a rotina, as práticas cotidianas são compostas por “estratégias”
individuais e/ou coletivas a fim de realizar atividades recorrentes no
dia-a-dia, estas podem ser padronizadas, ou seja, há uma repetição de um modelo
(reafirmado por meio dos discursos) a ser seguido para que o indivíduo seja
inserido no âmbito social; ou, esses padrões podem ser rompidos, gerando novas
“táticas” para lidar com o cotidiano.
Vanêssa Freitas
[1] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora.
Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[2] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora.
Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[3] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora.
Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis, Vozes, 1987.
[5] CERTEAU, Michel
de. Artes de fazer: A invenção do cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1998.
Muito bom. Parabéns pela iniciativa! Allisson Américo.
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