Da esquerda para a direita: Lilita,
Antônia e Helena – As “Três Marias da Barragem”. Fonte: Arquivo pessoal de Ene
Moreira Pinheiro.
Já adultas, a família – mãe, pai, irmãos e as “Três Marias” – morou um
tempo no Sítio Barragem, município de Pau dos Ferros/RN, passando antes por
outras zonas rurais, como o Sítio Maniçoba, também município de Pau dos
Ferros/RN. Ao residirem no Sítio Barragem, a população pauferrense passou a
tomar conhecimento sobre a existência destas três mulheres, pois marcavam
presença nas ruas da cidade durante as noites de sexta-feira, sempre com seus
rostos cobertos por um lençol ou toalha, pedindo mantimentos à alguns moradores
da cidade e retornando à zona rural antes do nascer do sol. Após a morte do
senhor Raimundo de Souza Nascimento, mais conhecido por Raimundo Palheta, pai
das “Três Marias”, a família passou a residir no Sítio Alencar, município de
Pau dos Ferros.
Segundo os relatos de uma moradora e grande conhecedora da vida destas
três mulheres, Ene Moreira Pinheiro[1],
durante certo tempo, as irmãs pararam de freqüentar a cidade e, de maneira
surpreendente, para aqueles que imaginavam que elas haviam morrido, Maria da
Conceição Nascimento, mais conhecida por Lilita, tornou a caminhar na cidade
durante a noite. Certa vez, conta Ene Pinheiro, Lilita apareceu sozinha:
Ela ficava no escuro, sentada na calçada [...] aí eu
ia, pegava um copo de leite e ia a procura dela; ai eu chegava lá e ela com a
cara coberta, ai eu dizia “pegue mulher o copo de leite” e ela dizia “deixe
ai”, ai eu deixava. Ai começou essa rotina, uma vez por semana.[2]
Lilita, por sentir-se segura e à vontade ao falar com Ene, devido ao
contato semanal, confessou-lhe que estava sofrendo com muitas dores:
Ela se aproximou e disse “mulher, eu to tão doente”,
isso ela com uma barriga bem grande, ai eu perguntei se era um menino, se ela
tava grávida, mas ela dizia “não, né menino não, eu tô muito doente”, ai eu
disse “pois venha amanhã de dia que eu levo você no médico”, mas eu esperei e
ela não veio.[3]
Ou seja, apesar dar dores, Lilita não abandonou seu costume de ir à
cidade apenas durante a noite. Então, na semana seguinte, ela retornou à casa
de Ene, que a levou ao hospital, onde foi diagnosticado que ela tinha um mioma
e precisava se submeter a uma cirurgia, processo este que necessitava de exames
prévios:
Eu disse pra ela que ela ia ter que fazer uns exames e
precisava ficar na cidade naquela noite, que dormiria na minha casa. Ai eu fui,
marquei os exames no laboratório, mas ela disse que não ia ficar, mas a vontade
de ficar boa era muito grande, acho que ela sentia muita dor e findou dizendo
que ficava; ai eu disse “pois você vai dormir aqui em casa”, ai ela disse “não,
eu fico aqui no muro”. Não entrou em casa de jeito nenhum [...] ela também não
dormiu nessa noite, não![4]
Este comportamento arredio e de exclusão caracteriza ações comportamentais
tidas como marginalizadas, conceito explorado por Michel Foucault [5] ao
descrever estes seres enquanto “infames”, excluídos, discriminados, diferentes
em relação padrão vigente da sociedade, que vivem à margem, tanto no sentido
espacial, de lugar habitacional, tendo em vista que sempre moraram em locais
distantes do centro da cidade, ou seja, longe do foco das praticas cotidianas
vigentes, o que compreende a zona rural e/ou à bairros periféricos; quanto fora
do convívio social pauferrense, fugindo das regras comportamentais impostas
pela maioria e das relações sociais cotidianas:
Todas essas vidas destinadas a passar por baixo
de qualquer discurso e a desaparecer sem
nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com freqüência
enigmáticos – a partir do momento de seu contato instantâneo com o poder. De modo que é, sem dúvida, para sempre
impossível recuperá-las nelas próprias, taiscomo podiam ser “em estado livre”;
só podemos balizá-las tomadas nas declamações, nas parcialidades táticas, nas
mentiras imperativas supostas nos jogos de poder e nas relações com ele. [6]
Com o resultado dos exames, diagnosticou-se uma anemia muito forte em
Lilita, impedindo-a de retirar o mioma, pois antes ela deveria ser internada
para tomar algumas bolsas de sangue e, só assim, ter condições de entrar no
processo cirúrgico, realizado pelo Dr. Etelânio Figueiredo.
Ao internar Lilita, foi necessário que Ene providenciasse algumas
camisolas pretas, pois esta era a única cor que as “Três Marias” usavam. Neste
sentido, já é possível fazer uma comparação entre a infância/adolescência
destas irmãs e a vida adulta, pois um costume havia se modificado: quando
crianças/adolescentes, as “Três Marias” gostavam de usar roupas espalhafatosas,
com muitas cores e estampas, porém, talvez como uma forma de luto à morte do
pai, ela haviam passado a usar apenas preto, tanto nas roupas, quanto nas
sandálias e isso perdurou até após a morte da mãe delas, a senhora Celcina
Nonato Costa, que faleceu em meados de 2005/2006, logo após a cirurgia de
Lilita:
A mãe delas estava doente na casa de um tio, então,
quando Lilita saiu do hospital, eu pedi para ela ficar na casa desse tio,
porque a mãe já estava lá, ia ter um convívio melhor [...] Pois quando ela
passou uns quatro dias na casa do tio dela, a mãe dela piorou... sei que quando
procuraram ela, ela havia fugido, cirurgiada [...] mas a mãe dela disse que ela
tinha ido pra casa, tinha quase certeza. E coincidiu: ela saiu de casa de
manhã, quando foi de noite a mãe dela morreu. [7]
Nota-se, nesse sentido, que excluir-se da sociedade ou até do convívio de
pessoas conhecidas não é apenas uma maneira que elas desenvolveram de viver
suas vidas, mas de introspecção, de reclusão por medo de encarar certas
situações complexas, como foi a morte da mãe, mais um motivo para que as “Três
Marias da Barragem” sumissem por um bom tempo das ruas noturnas de Pau dos
Ferros.
Vanêssa Freitas
[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[2] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[3] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[4] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[5] FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In:
______. O que é um autor? Lisboa:
Presença, 1994.
[6] FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In:
______. O que é um autor? Lisboa:
Presença, 1994.
[7] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
Muito interessante,parabéns Vanessa !
ResponderExcluirEstou adorando ler a história das "Três Marias da barragem", eu tinha tanto medo delas. Excelente trabalho Vanessa. Parabéns.
ResponderExcluirMuito bacana Vanessa adorei o artigo sobre elas ,parabéns ..
ResponderExcluirParabéns Vanessa.
ResponderExcluirEu tinha medo delas.