As “Três Marias da
Barragem” caminhando pelas ruas de Pau dos Ferros/RN. Fonte: Blog Nossa Pau dos
Ferros.
Ene Pinheiro relata que muitos dias depois, Lilita
voltou a freqüentar sua casa, agora acompanhada das outras duas irmãs, Antônia
e Helena:
Lilita já mais socializada comigo, mas as
outras não... de cabeças amarradas, um pano preto na cabeça [...] eu sabia o
dia que elas vinham e dava aquela janta e algumas coisas pra elas levarem...
elas comiam sempre na calçada, ficavam bem longe assim no escuro e comiam,
muito complicadas pra comer, não é tudo que elas comem não, sabe? [...] mesmo
depois de um tempo, Lilita era que conversava mais, as outras ficavam rindo;
Lilita era quem pedia mais as coisas e perguntava se as outras queriam. [1]
Podemos destacar, então, certa liderança de Lilita em
meio ao trio, principalmente por ela conseguir ser mais comunicativa, um pouco
menos desinibida que as outras duas, que por sinal, são bem mais cuidadosas com
a aparência do que Lilita:
Tem duas que são bem penteadinhas, parece
que elas usam bem muito óleo no cabelo, que o cabelo é bem arrumadinho, mas tem
uma que é toda arrepiada, que não se cuida muito; as outras tem cuidado pelo
menos com o cabelo, deixando arrumadinho. [...] Uma me disse uma vez que usa
banha de galinha no cabelo e a outra disse que não gosta de usar nada no
cabelo. [...] Ai eu fico brincando com Lilita, dizendo pra ela passar o óleo,
pra ficar bem arrumado, porque as outras duas até prendem o cabelo. [2]
Em meio aquela situação complicada na qual estas três
mulheres viviam, Ene conta que partiu dela o interesse por conseguir uma
aposentadoria ou alguma espécie de benefício financeiro para as três irmãs,
tendo em vista que elas viviam dos mantimentos doados pelas pessoas nas quais
elas tinham um certo contato:
A iniciativa partiu de mim, não foi de
ninguém da família, não. (...) Mas não podia falar em aposentaria, não, desses
documentos, não. Eu disse que esses documentos eram pra conseguir cadastrá-las
pra pegar a feira, porque elas botaram na cabeça, principalmente Lilita, que a
mãe só morreu porque se aposentou. [3]
Há, então, mais uma demonstração de que estas mulheres
desenvolveram crenças e maneiras de enxergar o mundo ao redor de uma maneira
bastante peculiar, baseada em fatos recorrentes que, coincidentemente ou não,
fazia sentido de alguma maneira, algo ilustrado com a aproximação temporal
entre a aposentadoria da mãe e sua morte. Logo, entenderam que a aposentadoria,
algo desconhecido para elas, era sinal que a morte estava se aproximando e, por
mais que estas mulheres tenham uma grande dificuldade em viver em meio a uma
sociedade de padrões, temiam a morte e, por isso, queriam distanciar-se de algo
que pudesse provocá-la.
Devido a aproximação de Ene com as “Três Marias da
Barragem” e em busca de obter a aprovação da aposentadoria para Lilita (por ser
a mais velha), Ene conseguiu levar o médico até a casa delas, para que ele
pudesse atestar a necessidade do benefício, relatando detalhadamente que:
A casa delas é uma casa grande de um tio,
que elas moram, só que é assim: da sala pra frente é o “palácio de Valdir”,
como se diz, que é esse que é o “melhor”, que tem televisão, ele tem uma moto;
ele cozinha dentro desse quarto. Lá são 5 pessoas, são 5 panelas. Elas não
cozinham pra todos, é tudo separado, no meio do tempo, as trempes no meio do
tempo. [...] Tem outro quarto que é do Zé [...]. Ai tem um quarto grande, que
ao invés delas ficarem organizadas nas redes, elas pegaram umas estacas e
enfiaram fazendo um corredor, que é cheio de porcaria – fogão velho, sacos
pendurados cheios de vasilhas velhas e molambos. [...] Elas não tinham
geladeira. [...] A Lilita cria 60 gatos, vive com esses gatos em cima dela. [1]
Essa maneira de organizar o espaço em que vivem nos
mostra que, apesar de demonstrarem união, por andarem sempre juntas, elas
preservam a individualidade uma da outra, pois cada uma tem sua comida
separada, seu espaço para cozinhar e para dormir, e que até certo ponto são
respeitadas pelos irmãos que possuem uma maneira de viver e de conviver com a
sociedade bem diferenciada da que elas desenvolveram. Estas são as chamadas por
Certeau de “estratégias”, ou seja, maneiras de burlar os padrões, como ele
define:
A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito
como algo próprio e ser a base de
onde se podem gerir as relações com uma
exterioridade de alvos ou ameaças [...]. Gesto cartesiano, quem sabe:
circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do
Outro. [2]
Então, ao chegar com o médico na casa delas, Ene conta
que a atitude das irmãs não poderia ter sido diferente:
Ai quando o médico chegou elas correram;
não deu tempo elas correrem pros matos... quando chega gente lá e elas escutam
o barulho do carro elas correm. [...] Correram pra dentro do corredor e ficaram
escondidas; o médico só conseguiu ver Lilita, as outras duas se esconderam
mesmo. [...] quando o médico viu a situação, disse q ia dar o atestado
definitivo. [3]
Este comportamento nos remete ao passado destas
mulheres, quando ainda viviam a infância no Sítio Sanharão e não permitiam
serem vistas por quem chegasse à casa da família delas, por ordem dos pais,
principalmente da mãe, Dona Celcina, [4]
demonstrando, assim, que este costume de correr e se esconder quando chegasse
alguma visita foi interiorizado por elas, gerando um comportamento anti-social
e atípico, como se tivessem medo do que vem de fora, do estrangeiro, do
desconhecido, tornando-as excluídas da sociedade vigente por vontade ou até
mesmo por um trauma gerado na infância, que permanece até os dias atuais. Tanto que esta atitude, de não querer entrar
em contato com pessoas desconhecidas, também foi relatado por Regilma Freitas:
Às vezes, quando tinha gente de fora aqui
em casa, elas ficavam escondidas ali por trás do carro, na área que sempre fica
escura, ai tem uma que diz “não, mulher, vá buscar [os mantimentos], tem gente
aí, num vou entrar não”. Ai eulevo e entrego as coisas pra elas. [5]
Em conseqüência disso, ou seja, dessa rejeição ao que é
desconhecido, gerou-se uma identidade muito particular, na qual Sodré trata
como
Um complexo relacional que
liga o sujeito a um quadro contínuo de referencias, constituído pela
intersecção de sua história individual com a do grupo onde vive. Cada sujeito
singular é parte de uma continuidade histórico-social, afetado pela integração
num contexto global de carências (naturais, psicossociais) e de relações com
outros indivíduos. [6]
Vanêssa Freitas.
[2] CERTEAU, Michel
de. Artes de fazer: A invenção do
cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 99.
[5] FREITAS, Maria
Regilma de. Entrevista concedida à
autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de 2013.
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