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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

CONFISSÕES DO OBELISCO



Eu não moro mais na rua
Da calçada de Lisboa,
Lugar que a gente fazia
Uma cachorrada boa,
Jogando conversa fora
Falando de gente atoa...

Na minh’alma inda ecoa
Lembranças daquela rua,
Palco em que brinquei de tica
Sob os olhares da lua;
Já são anos de distância
E a saudade continua...

Nesta fabulosa rua
Eu me criei sendo ruim,
Jogando pedra nas telhas,
Brincando em trave mirim
Apostando um e cinqüenta
Para chupar de din-din...

Eu me criei foi assim
Sem ter sofisticação,
Jogando o pião na terra
Depois botando na mão,
Guiando carro de lata
Amarrado num cordão.

Mas hoje, só tem mansão
Na minha rua querida,
Prédios belos, faraônicos
Em um crescer sem medida,
Nem parece aquele canto
Em que eu fui feliz na vida.

Vejo no tempo, perdida,
A forma tradicional.
Aquelas casas antigas
De teor escultural
Foram todas reformadas
Pelo progresso banal.

Eu até me sinto mal
Ao lembrar dessa mudança,
Me bate uma dor fervente
Queimando minha esperança
De ver de novo o cenário
Que brinquei quando criança.


Mas meu peito não se cansa
Insistindo em recordar
E eu lembrei  de uma história
Que ouvi naquele lugar,
Coisa que vale um tesouro
Difícil de avaliar.

Antes do sol se deitar
E a lua vir como vela,
Bem na cabeça do alto
Debruçada na janela,
Ficava Tita cantando
As canções do tempo dela.

Tita, era moça velha
Que na rua residia,
Gostava de conversar
E cantar a Ave Maria
Mesmo na hora em que a noite
Saudava a morte do dia.

E foi num lendário dia
Que bem na hora da janta
Eu desci para a calçada
De sua mãe, Dona Santa,
Para ouvir Tita Cantar
O que até hoje me encanta.

Numa hora sacrossanta
Tita depois de cantar,
Falou que num certo dia
Tinha ido conversar
Na praça com o Obelisco
E ouvir ele reclamar:

-Amiga, eu vou confessar,
Meu sofrimento é por dez...
Me botaram corretivo
Mijaram muito em meus pés
E eu sempre fiquei calado
Sem oferecer revés.

Dos meus filhos infiéis,
Poucos sabem que eu sou.
Há mais de 50 anos
Plantado aqui eu estou
E ninguém hoje calcula
O que isso representou.

Muito tempo se passou,
Mas poucos lembram do dia
Que eu nasci comemorando
Na mais profunda alegria
100 anos de município,
200 de freguesia.

Hoje eu sou como um vigia,
Pois minha altura, em verdade,
Faz com que eu presencie
Olhando em passividade
O que acontece nos quatro
Cantos de nossa cidade.

Confesso, que à divindade,
Dou muito agradecimento...
Ainda bem que meu Deus
Me fez assim de cimento
Porque com tudo que vejo
Morreria de tormento.

Se eu tivesse sentimento,
Veias, sangue, coração,
Eu já teria morrido
Da dor da decepção
Chorando a realidade
Dos filhos do meu torrão.

De cima eu tenho a visão
De um sofrer que desanima.
Se eu não fosse de concreto,
Do pé até lá em cima
Já teria derretido
Com a sequidão do clima.

Já contemplei sem estima
Aqui mesmo nessa praça,
Diversas bandas tocando
Enaltecendo cachaça,
Farra e prostituição
E o povão achando graça.

Vejo a perdição que abraça
A juventude atual.
Adolescentes de preto
Fumando no madrigal
Comemorando o velório
De uma morte cultural.

Vejo a vaidade imoral
Nos regendo todo dia.
Gente banhada de ouro
Na mais fina regalia
Cheia de roupas de grife,
Mas com a barriga vazia.

Carro zero em garantia
Mansão como monumento,
Tudo dando a impressão
Que está bancando o momento, 
Mas no fim das contas deve
Até promessa a jumento.

Da periferia ao centro,
A droga é como rotina,
Trocada por todo canto,
Vendida por toda esquina
Acabando com as famílias
Da mais ralé a mais fina.

No crack e na cocaína
Tem muita gente perdida
Jogando tudo no lixo
Como em ato suicida,
Ceifando sonhos nas curvas
Da rodovia da vida.

Em cada rua entupida
É feia a situação,
O trânsito está caótico
Carecendo de atenção;
Com acidentes por falta
De uma sinalização.

Além disso, sem razão,
Há uma grande impunidade,
Quem mata por brincadeira
Na irresponsabilidade,
Desfila de cara limpa
Na maior felicidade.

Mas o pior, na cidade,
É a política ao meu ver,
Famílias se abufelando
Pelas tetas do poder
Mamando por muitos anos
Vendo a pobreza crescer.

Brigam, brigam por poder,
Depois se abraçam de novo;
Com esse tipo de coisa
Juro que não me comovo
Porque no final da história
Só quem se lasca é povo.

O mesmo bendito povo
Que no tempo de eleição,
É comprado por remédio
Uma feira e um bujão
E sem opinião própria
Fica arrotando paixão.

Nas ruas, a multidão
Sem ter nada na cachola...
Na favela mil crianças
Vivendo de crime e esmola
Superlotando os barracos
E esvaziando a escola.

Vejo esse sofrer que assola
A cidade em todo plano.
Nos hospitais morre gente
Pelo descaso tirano,
Sendo com toda verdade
Como um matadouro humano.

Envolto no desengano,
Para não correr o risco,
Eu bradei: Tita, se cale!
Não conte mais nenhum trisco
Que já estou agoniado
Com essa história do Obelisco.

Por temer um maior risco
Ela decidiu parar
E me disse:-Só parei
Para não te amedrontar
Porque ele inda tem muita
Coisa pra me confessar.

Mas eu disse: -É bom parar
Que uma dor já me espezinha
E se eu for ficar pensando
Que essa cidade é a minha
Por muitos e muitos dias
Eu não vou dormir nadinha.

Tita ficou lá sozinha,
Eu dei tchau, dei um sorriso...
Ouvi isso tudo dela
E até hoje ainda friso
Que qualquer um me irrita
Se vier dizer que Tita
Era fraca do juízo.

POR MANOEL CAVALCANTE







2 comentários:

  1. O poeta Manoel Cavalcante é digno de aplausos. A descrição inicial de Pau dos Ferros é a memória viva da minha infância, que jamais esqueci. E de todas as crianças do meu tempo. Muita saudade e muita tristeza pelas mudanças. João Escolástico Bezerra Filho.

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  2. Olhando bem dentro da foto la dentro estava o cinema onde so passava filme de calboi americano no obelisco agente brincava de renda-se, saudades de muitos amigos de infancia Renato de Dr. Cleodon, Elias de Zequinha, Cleanto de Dr. Paulo, Zé Maria e Nilson de Zefirino, fica dificil falar das meninas hoje todas casadas, mas vamos la vou citar algumas no meio delas grandes paixões Eulalia Maia, Betania de Saturno, Solenia de Zefirino, Clelia do Dr. Paulo, Maria José etantas outras todas lindas, amem.

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