Artistas ou agiotas?
Autora de biografias de grande sucesso, Mary del Priore fala em entrevista sobre a história das narrativas sobre a vida de figuras públicas, o fim da privacidade e critica duramente o grupo Procure saber
Ronaldo Pelli
23/10/2013Comentar essa matéria
“A ênfase do grupo Procure Saber em transformar biógrafos em ‘gente que ganha dinheiro’ é chocante! Uma tal visão das coisas só revela a ganância dos membros deste grupo. Somos jornalistas, historiadores, escritores, apenas interessados em fazer nosso trabalho pelo qual somos pagos proporcionalmente ao mercado de livros que no Brasil ainda é muito pequeno. O que querem de nós, que paguemos ‘dízimo’? E chamar essa gente de ‘artistas’? Melhor seria: agiotas ou comerciantes”, diz ela, em conversa por e-mail.
A intenção da professora da pós-graduação de Historia da Universidade Salgado de Oliveira nesta discussão é, em vez de diminuir as produções de cunho histórico, divulgar o conhecimento sobre o assunto. Mais biografias, e sem autorização de ninguém. Se houver calúnia ou exageros, que a Justiça seja chamada para resolvar a questão. Herdeiros impedindo a publicação de qualquer texto? Um absurdo. Imagine ter que atender todos os descendentes dos cerca de 40 filhos bastardos de D. Pedro I?Confirmando esse interesse na difusão, recentemente ela lançou o blog História hoje, para dialogar com os entusiastas do tema. Além disso, após estudar as crianças e as mulheres em separado, acaba de publicar a História dos homens no Brasil, nada menos que seu 37º livro, segundo o seu site oficial. Seu interesse pelas biografias vem desde o início de sua carreira. Em entrevista para a Revista de História da Biblioteca Nacional, em 2010, ela já explicava como começou a escrevê-las:“Quando me mudei para o Rio de Janeiro, descobri o riquíssimo arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e percebi quantos filões poderiam nascer dali. E, nesse momento, houve uma ruptura naquilo que eu considerava que poderia ser uma carreira, como historiadora, e não como professora. Nunca me senti professora de nada e nem de ninguém. Então, naquele período, vislumbrei a possibilidade de fazer livros de divulgação que chamassem atenção para a questão da História do Brasil. Escrever sobre personagens que fossem desconhecidos, usando-os como janelas para o passado. E aí o meu trabalho deu uma guinada, e comecei a focar nas biografias, onde tenho tido bastante sucesso.”Agora, em entrevista por email, ela reforça que os textos sobre a história de homens - ilustres ou não -, inclusive, não devem ficarrestritos ao ambiente universitário, mas ser tratado como uma das vertentes da literatura, como “romances, thrillers policiais, auto-ajuda”.
“Considerado um gênero menor, paradoxalmente ele atrai milhões de leitores e tem autores desde a Antiguidade. O pioneiro Plutarco em sua obra Vidas paralelas tratou da biografia de Rômulo, Cesar entre outros personagens históricos”, explica a professora, que vai participar de um evento na Estação das letras, no Flamengo, Zona Sul do Rio, no dia 28 de novembro, discutindo exatamente “Literatura e História: Limites Ilimitados”.“Outra característica que se esquece é que a biografia é filha de seu tempo. Ela reflete as formas de pensar de uma época. Na Antiguidade, a biografia fabricava heróis, na Idade Média, santos e personagens de vida espiritual irreprochável, na Idade Moderna, obras como a de Vasari ou Brantome procuravam personagens moralizantes, capazes de transmitir ideais por meio de seu comportamento.”A professora recorda que “no século XIX, biografias de reis e generais serviram a consolidar a ideia de nação, com seus heróis e feitos”. Já no seguinte, autores famosos como Stefan Zweig e Marguerite Yourcenar escreveram romances históricos, ao abordar personagens famosos como Maria Antonieta ou o imperador romano Adriano, respectivamente. Já no atual século, o grande tema é a intimidade, “objeto de estudos das ciências humanas, através da história, da psicanálise e da antropologia e é natural que essas questões se transfiram para as biografias”, escreve ela.
Segundo Mary, em nossa sociedade pós-burguesa, os valores do exibicionismo se tornaram mais fortes do que os da discrição e do pudor. Assuntos que frequentam as páginas de revistas de fofocas vão necessariamente aparecer na obra de biografados.“Figuras públicas são públicas. Então que tenham coerência entre o que dizem e o que fazem”, opina, lembrando que os limites entre o que é público e o privado está ficando cada vez mais difícil de se perceber. “Em meu livro, Historias Intimas, demonstrei que a privacidade, um fenômeno cultural que foi lentamente construído pela burguesia entre os séculos XVIII e XIX está sendo desmontado.”A professora argumenta que o estudo da vida privada, em vez de ser um problema, deve ser encarado como uma qualidade das biografias. Ela já comentava essa propostana entrevista em 2010 para a Revista de História da Biblioteca Nacional, quando afirmou que um dos principais pontos quando se escreve sobre a vida de alguém é exatamente o detalhe.“Isto é absolutamente inquestionável. A possibilidade de o leitor ver aquilo que você está contando. O escritor deve estar menos interessado em interpretar ou justificar determinados fatos e mais preocupado em recuperar a atmosfera de um período e descrever certos acontecimentos. E, para isso, é preciso estudar sobre a vida privada.”Basta, agora, os biografados concordarem.
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