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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

1934-LUÍS DA CÂMARA CASCUDO VISITA SÃO MIGUEL


São Miguel
Luís da Câmara Cascudo[1]
O auto torneja a lombada irregular das serras que se continuam, asperas e verdes, emergindo das nevoas matinais e frias. Subimos, ao ronco de oito cylindros uivantes, rompendo um ventania acre, que cheira a juremas e se aquece na terra vermelha. Rampas e aclives brutos surgem ao ímpeto da carreira phantastica, calcando a rodovia serpenteante do lugar. Não Passamos dois minutos no mesmo nivel. Vinte e quatro quilômetros atravez da cordilheira silenciosa. Num alto, semeadas esparsamente nas subidas de outros contrafortes apparecem as casinhas de São Miguel, rebanho immovel e branco, que a capella pastoreia…
Districto de paz em 1859, freguezia em 75, villa em 11 de dezembro de 1876, comarca reestabelecida em 1919. São Miguel justifica a imagem classica de um comboio de surrões mal arrumados. O casario trepa atropeladamente nos altos e baixos, obrigando gymnasticas e tendo calçadas de dois e meio metros de altura. Newton Azevedo Maia, o promotor, mora num arranha-céu de porta e janella.

Luís da Câmara Cascudo
A figura popular é a do patrono onomastico do grupo escolar, o padre Cosme, Cosme Leite da Silva, ordenado em 1846, constructor da capella, chefe político e verdadeiro juiz-de-paz nesse nucleo de eternas brigas sangrentas. O padre Cosme morreu em 11 de dezembro de 1909, deixando fama espalhada de acolhedor e santo varão.
 S. Miguel tem esse nome porque a lagôa que o denominou foi deparada num dia do santo, general das celestes phalanges. Justifica o orago a paixão que todos têm pela velhissima imagem que o padre Tertuliano Fernandes tem a bondade de ir mostra-me, abrindo a capella adormecida sob aquelle sol glorioso.
No altar, caso unico, estão os dois oragos. O velho e o novo mais bonito e rutilante com sua armadura medieval. Estão juntos porque os fieis não admittem o exilio do velho poderoso. Em 1921, querendo pagar uma promessa, o Sr. Francisco da Costa Queiroz, retirou-o a noite. Foi uma revolução. No outro dia, centenas de homens estavam em armas, doidos de raiva e ameaçando esvaziar todas as casas das cercanias até encontrar o perdido padroeiro. S. Miguel apressou-se em reaparecer e a paz cahiu dos ceus escaldantes.
São Miguel, como venho olhando pelas estradas, parece com Patú e Luiz Gomes, na quantidade de cruzes que marcam o sítio das mortes violentas. É uma vila que teve brado de guerra nos annaes da valentia preterita.
Em dezembro de 1895, meu Pae, então alferes Francisco Justino de Oliveira Cascudo, commandou o fogo contra “Moita Brava”, cangaceiro famoso pela violencia das investidas e certissimo de ser inviolável porque andava com um Santo Antonio de ouro ao pescoço. Morreu alli perto do cemiterio novo, numa casa de janellorio vasto. O tiroteio foi á noite. Derribado com tres tiros mortaes, escorado no bacamarte inutil, vomitando sangue, ainda recebeu meu Pai com derradeira bravata, inocua e tremenda: - Num entre qui morre…  
E fechou os olhos agonisando.

Antiga fachada da igreja de São Miguel
Francisco Severiano Sobrinho aponta a casa onde passou os ultimos momentos o jagunço José Brasil, caçado durante anos, numa teimosia de fanatismo. Esse José Brasil matou o rico Francisco José de Carvalho, dono do “Potó”, e cortou o cadaver, junta por junta, numa paciencia de magarefe. Antonio Monteiro de Carvalho, filho do morto, desilludido de vingar seu pai, usou de uma tactica feudal. Procurou Manoel Joaquim de Amorim apaixonado de sua irmã e prometteu-lhe a mão que lhe fôra recusada, se o ajudasse a prender o assassino. Amorim procurou Brasil num afã que só o Amor explica. Acabou depois de varias guerrilhas segurando-o em Pedras de Fogo, segundo uns, ou Goyanna, segundo outros. Trouxeram José Brasil com todos os mimos. Chegando a S. Miguel, dançaram. Pela manhã levaram o matador para uma pedra chata que ainda está perto da capella. José Brasil pediu um padre para confessar-se. Monteirinho, filho do assassinado, respondeu rispido.
-Você não deu confessor a meu pae!…
E atiraram em José Brasil, como numa sussuarana.
A promessa foi mantida. Manoel Joaquim de Amorim se casou com Anna Fausta de Carvalho.
O actual prefeito de S. Miguel, Sr. Manoel Vieira de Carvalho, é neto do velho Amorim, expressão tradicional de coragem. Vivera entre tiros e barulhos, discutindo palmos de terra a descarga de clavinotes. Manoel Vieira apontou me a calçada de onde seu avô matara o ricaço José Bezerra de Medeiros, chamado “Bezerra Matuto”, com dois tiros. No dia 16 de agosto de 1899, Firmino José de Medeiros, filho de Bezerra Matuto, matava Amorim, que completara 78 anos.
Uma propriedade próxima a São Miguel é a data dos “Quintos dos Infernos” e todos os seus proprietáarios sucumbem a arma branca ou de fogo. Manoel Joaquim foi dono dos “Quintos”. João Pessoa de Albuquerque, outro proprietário, caiu morto a 24 de maio de 1928. Outro senhor dos “Quintos”, Manuel Ferreira de Carvalho, morreu numa festa de S. João, em lucta, a 23 de junho deste 1934. A quem caberá a herança sinistra?…
O juiz da comarca, Dr. Janúncio Nobrega, gentilmente fez-me as honras da villa, localizando os pontos dos embates. Apesar de todas as garantias, eu começo a esperar um encontro típico, tinidos de facas e estouro de bacamartes boca-de-sino, daqueles que eram carregados com pregos, pedras e pedaços de ferros. Mas a gentileza de todos faz esquecer a tradição tempestuosa. As horas passam leves, no ar silencioso.
   Quando desço, aos saltos do auto veloz, trago lembranças, notas e laranjas. A serra desdobra sua perspectiva senhorial e massiça. A lufada requeima como uma coivara. Parece nascida do coração impetuoso e bravio dos homens do velho São Miguel, terra amavel e guerreira, como outrora, nos tempos romanticos em que se amava com guantes de ferro.

[1] 1 – Transcrição da reportagem realizada por Luís da Câmara Cascudo, publicada na primeira página do jornal “A Republica”, edição de 31 de agosto de 1934, após uma visita deste famoso escritor a São Miguel. Texto reproduzido conforme o original.


Fonte: Tok de História/ Rostand Medeiros

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