O século XX traz para a cultura
ocidental um novo modo de viver e de pensar. A arte não permanece alheia a
isso, haja vista a chegada do pensamento modernista. Como bem nos lembra o
estudioso João Luiz Lafetá, o Modernismo nos traz pelo menos dois projetos: um
estético, outro ideológico. O projeto estético, mais ligado à chamada “fase
heróica” de 1922 e o ideológico ao Modernismo regionalista de 1930. Um referente
à linguagem, outro às mazelas sociais do Brasil daquele tempo.
Todavia, é importante ressaltar
que esses dois projetos devem ser vistos de forma dialética e não dicotômica.
Os dois se completam para dar voz à riqueza da criação de nossa arte moderna.
Portanto, ainda que com diferenças significantes, o Modernismo de 1930 traz
marcas e percorre caminhos abertos pela primeira fase. Isto é, os aspectos do Modernismo da
primeira fase que enriquece o de 1930 estão ligados ao rompimento com a linguagem arcaica,
inflexível, tradicional e acadêmica que amarrava a literatura à erudição. José
Lins do Rego, por exemplo, seria fortemente influenciado pela linguagem popular
dos cantadores de viola, das velhas contadoras de estórias e dos cordelistas de
seu tempo. Certa vez, quando questionado por que não escrevia a continuação do
romance Pedra Bonita, Zé Lins
responde que precisaria tornar a ler o poeta popular João Martins de Athayde
para que realizasse tal feito.
Em 1953, José Lins do Rego nos
presenteia com a tal continuação de Pedra
Bonita, seu último romance:
Cangaceiros. Era a continuidade da história da família Vieira, contada pelo
jovem Antônio Bento, que perde dois de seus irmãos para o cangaço, sendo que um
deles, Aparício, se torna chefe do bando, feito que aproxima Bento do bando de
cangaceiros através de serviços prestados, como troca de informações,
transporte de munição e até tratamento aos cabras baleados.
É justamente nessa preciosa obra do Modernismo de
30 que uma curiosa cena se passa em nossa Princesinha do Oeste, Pau dos Ferros,
quando uma lavadeira de roupa conta a seguinte estória:
- Aparício chegou em Pau dos Ferros e estava na casa
do prefeito, todo grande, como dono de tudo. Os cabras comiam e bebiam pelas
bodegas. Pois não é que um sujeito botou-se para Aparício querendo matar o
homem? Aí, menina, a coisa pegou fogo. A briga nem demorou um minuto. Aparício
pulou para a rua com o sujeito e o bicho ficou estendido na calçada. Aí ele
gritou para os cabras: “Vamos dar uma lição nesta cambada.” E deram mesmo. Não
ficou nem uma donzela em Pau dos Ferros, comeram até uma menina de nove anos.
[...]
Dizem que Aparício pegou a mulhé do homem da mesa de
renda, um tal de Feliciano, e mandou os cabras se servir da pobre, um por um.
Pau dos Ferros não tem mais honra e o povo fugiu de lá. Até a feira não dá
mais. (REGO, 2010, p. 48).
É importante ressaltar que essa
pequena narrativa trata-se de uma obra ficcional e não possui nenhum
comprometimento histórico, tais letras devem ser lidas como arte e entendidas
como um privilégio, ainda que através de uma representação tão trágica.
O trecho acima, ainda que de
ficção, nos permite recriar um retrato da organização social da Pau dos Ferros
de Zé Lins. Iniciamos pela própria organização política, que já conta com um
prefeito, cargo conferido ao chefe do executivo de uma cidade, e ainda a
presença de uma “mesa de rendas”, órgão do governo que seria correspondente às
agências da Receita Federal. Entretanto, apesar de ser um meio urbano, a cidade
ainda possui traços rurais, como as bodegas. Dessa maneira, a cidade, como
outras inseridas nesse contexto, vivia a transição lenta do rural para o urbano,
conforme ocorria no século XX por essas terras de cá.
Algo que também merece destaque é
o sentimento de honra que é ferido por um ato de violência. No contexto do
sertão nordestino, sobretudo até o século passado, sofrer uma ação violenta é
correr o risco de ser desonrado. Caso o que padece não vingue o ato, este perde
a sua honra e abre margem para que seja acometido de nova agressão. Por isso a
vingança é extremamente forte nesse espaço, pois é um meio de manter a honra e
de impor respeito. Como o povo não pôde com o poder do autoritário rifle de
Aparício, restou a desonra. As pessoas fugiram com o trauma e a vergonha da
violência e até mesmo a feira, símbolo de Pau dos Ferros fora da ficção, entra
em decadência.
Não há dúvidas da relevância do
Modernismo de 1930 para o Nordeste brasileiro, sobretudo para o seu semiárido.
Pois, através dele, a arte deixa de ser centralizada apenas no centro-sul do
país e avança às regiões tidas como periféricas. Nessa arte, ganharam espaço o
sertanejo simples, a seca, as instituições autoritárias e a briga por poder que
até hoje compõe nosso cenário. Pau dos Ferros, portanto, surge como espaço
nesse romance graças ao fato de que o Modernismo de 30 dá voz às paisagens
interioranas. O texto de Zé Lins, ainda que do século passado, pode permanecer
atual, a depender da leitura que se faça dele e de nossa sociedade.
Netanias Mateus de Souza Castro é mestrando em Letras pelo PPGL/UERN na
linha de pesquisa “Texto literário, crítica e cultura” e cabra macho.
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