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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

O MODERNISMO DE 1930, ZÉ LINS E PAU DOS FERROS



O século XX traz para a cultura ocidental um novo modo de viver e de pensar. A arte não permanece alheia a isso, haja vista a chegada do pensamento modernista. Como bem nos lembra o estudioso João Luiz Lafetá, o Modernismo nos traz pelo menos dois projetos: um estético, outro ideológico. O projeto estético, mais ligado à chamada “fase heróica” de 1922 e o ideológico ao Modernismo regionalista de 1930. Um referente à linguagem, outro às mazelas sociais do Brasil daquele tempo.

Todavia, é importante ressaltar que esses dois projetos devem ser vistos de forma dialética e não dicotômica. Os dois se completam para dar voz à riqueza da criação de nossa arte moderna. Portanto, ainda que com diferenças significantes, o Modernismo de 1930 traz marcas e percorre caminhos abertos pela primeira fase. Isto é, os aspectos do Modernismo da primeira fase que enriquece o de 1930 estão ligados ao rompimento com a linguagem arcaica, inflexível, tradicional e acadêmica que amarrava a literatura à erudição. José Lins do Rego, por exemplo, seria fortemente influenciado pela linguagem popular dos cantadores de viola, das velhas contadoras de estórias e dos cordelistas de seu tempo. Certa vez, quando questionado por que não escrevia a continuação do romance Pedra Bonita, Zé Lins responde que precisaria tornar a ler o poeta popular João Martins de Athayde para que realizasse tal feito.

Em 1953, José Lins do Rego nos presenteia com a tal continuação de Pedra Bonita, seu último romance: Cangaceiros. Era a continuidade da história da família Vieira, contada pelo jovem Antônio Bento, que perde dois de seus irmãos para o cangaço, sendo que um deles, Aparício, se torna chefe do bando, feito que aproxima Bento do bando de cangaceiros através de serviços prestados, como troca de informações, transporte de munição e até tratamento aos cabras baleados.

É justamente nessa preciosa obra do Modernismo de 30 que uma curiosa cena se passa em nossa Princesinha do Oeste, Pau dos Ferros, quando uma lavadeira de roupa conta a seguinte estória:

- Aparício chegou em Pau dos Ferros e estava na casa do prefeito, todo grande, como dono de tudo. Os cabras comiam e bebiam pelas bodegas. Pois não é que um sujeito botou-se para Aparício querendo matar o homem? Aí, menina, a coisa pegou fogo. A briga nem demorou um minuto. Aparício pulou para a rua com o sujeito e o bicho ficou estendido na calçada. Aí ele gritou para os cabras: “Vamos dar uma lição nesta cambada.” E deram mesmo. Não ficou nem uma donzela em Pau dos Ferros, comeram até uma menina de nove anos.
[...]
Dizem que Aparício pegou a mulhé do homem da mesa de renda, um tal de Feliciano, e mandou os cabras se servir da pobre, um por um. Pau dos Ferros não tem mais honra e o povo fugiu de lá. Até a feira não dá mais. (REGO, 2010, p. 48).

É importante ressaltar que essa pequena narrativa trata-se de uma obra ficcional e não possui nenhum comprometimento histórico, tais letras devem ser lidas como arte e entendidas como um privilégio, ainda que através de uma representação tão trágica.

O trecho acima, ainda que de ficção, nos permite recriar um retrato da organização social da Pau dos Ferros de Zé Lins. Iniciamos pela própria organização política, que já conta com um prefeito, cargo conferido ao chefe do executivo de uma cidade, e ainda a presença de uma “mesa de rendas”, órgão do governo que seria correspondente às agências da Receita Federal. Entretanto, apesar de ser um meio urbano, a cidade ainda possui traços rurais, como as bodegas. Dessa maneira, a cidade, como outras inseridas nesse contexto, vivia a transição lenta do rural para o urbano, conforme ocorria no século XX por essas terras de cá.

Algo que também merece destaque é o sentimento de honra que é ferido por um ato de violência. No contexto do sertão nordestino, sobretudo até o século passado, sofrer uma ação violenta é correr o risco de ser desonrado. Caso o que padece não vingue o ato, este perde a sua honra e abre margem para que seja acometido de nova agressão. Por isso a vingança é extremamente forte nesse espaço, pois é um meio de manter a honra e de impor respeito. Como o povo não pôde com o poder do autoritário rifle de Aparício, restou a desonra. As pessoas fugiram com o trauma e a vergonha da violência e até mesmo a feira, símbolo de Pau dos Ferros fora da ficção, entra em decadência.

Não há dúvidas da relevância do Modernismo de 1930 para o Nordeste brasileiro, sobretudo para o seu semiárido. Pois, através dele, a arte deixa de ser centralizada apenas no centro-sul do país e avança às regiões tidas como periféricas. Nessa arte, ganharam espaço o sertanejo simples, a seca, as instituições autoritárias e a briga por poder que até hoje compõe nosso cenário. Pau dos Ferros, portanto, surge como espaço nesse romance graças ao fato de que o Modernismo de 30 dá voz às paisagens interioranas. O texto de Zé Lins, ainda que do século passado, pode permanecer atual, a depender da leitura que se faça dele e de nossa sociedade.


Netanias Mateus de Souza Castro é mestrando em Letras pelo PPGL/UERN na linha de pesquisa “Texto literário, crítica e cultura” e cabra macho.


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