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domingo, 30 de março de 2014

DA SÉRIE: CURIOSIDADES SOBRE AS "TRÊS MARIAS DA BARRAGEM" - A VIDA ADULTA (FINAL DA SÉRIE)

 Parte de trás da casa do senhor Chico Capote, ambiente utilizado pelas “Três Marias da Barragem” todas as noites de terça-feira. Fonte: Arquivo pessoal de Maria Clara Almeida Melo. 22 de janeiro de 2013.



Ao terminar o culto, elas não voltam para casa imediatamente, permanecendo na cidade durante parte da madrugada, como Ene nos conta:

Elas vão pra casa do Senhor Chico Capote; tem um murinho lá, elas chegam, entram, dormem em baixo de uma pia. [...] Desde que elas começaram a andar por aqui que elas vão dormir lá. [...] Quando é duas horas da manhã elas tiram pro sítio de novo.[1]

Esta imagem nos proporciona uma visão incrível sobre a utilização dos espaços inabitáveis, costumeiramente, mas que na visão das “Três Marias da Barragem” parecem naturalmente confortáveis e seguros. Uma mesa de madeira, uma cadeira velha e pias de lavar roupas; um lugar comum, próprio para atividades corriqueiras, mas que é adaptado, taticamente, pelas “Três Marias da Barragem” :

A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como diz von Büllow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. [2]

Isso quer dizer que, por mais que as “Três Marias da Barragem” se isolem do Outro, trate-os como “inimigo”, no sentido de se colocar como diferente e de se distanciar das pessoas que compõem a sociedade em geral, elas precisam desse Outro até para se excluírem, ou seja, o espaço produzido e habitado pelos estrangeiros, aos olhos delas, também pode ser utilizado por elas, porém, com outros usos. Neste caso da foto, por exemplo, utilizam esta área da casa que não é habitada à noite, para que seja uma espécie de quarto, onde elas dormem – em baixo da mesa e próximo às pias (onde podemos observar os lençóis nos chão) – e se protegem do frio e das armadilhas da madrugada.

  Estudar, então, a vida destas três mulheres é ter no pioneirismo de um trabalho os desafios que o cercam, tornando o conhecimento adquirido bem mais significativo. É perceber o quanto nossa sociedade é heterogênea, com hábitos adquiridos por meio das experiências cotidianas, gerando identidades culturais diversificadas, que só enriquecem o convívio social. E, além de tudo isso, é entrar em contato com os discursos daqueles que tiveram algum tipo de relação com as “Três Marias da Barragem”, possibilitando a problematização dessas memórias. Memórias estas que Le Goff [3] define como conjuntos de lembranças absorvidas através das vivências e do foi que dito sobre essas vivências, de modo que estes conjuntos são compostos por recortes feitos pela mente de acordo com o que ela julga ser importante para ser mantido. Então, as opiniões expressas a respeito das “Três Marias da Barragem”, bem como a maneira na qual os acontecimentos que as envolveram ocorreram, foram primordiais para traçar um perfil bibliográfico desmistificador, respondendo indagações e instigando a busca por mais informações sobre tudo que remeta a essas mulheres.
Trabalhar com as memórias é algo delicado, porém prazeroso e indispensável, afinal, como diz Antonio Brasileiro:
Um dia, tudo será memória. As pessoas que andam naquela rua, as gentis, as sábias, as más, todas, todas serão memória; o mendigo que passa sem o cão, o ginasta, a mãe, o bobo, o cético, a turista, Deus, inclusive, regendo o fim das coisas memoráveis, também será memória. Deus e os pardais. Os grandes esqueletos do museu britânico e todo sofrimento serão memória. Eu, sentado aqui, serei só esses versos que dizem haver um eu sentado aqui.[4]

Portanto, faço da biografia problematizada das “Três Marias da Barragem”, fruto das memórias de alguns pauferrenses, também memória, afinal, a História e a Memória estão intrinsecamente ligadas, tornando a História uma Arte: a arte de reviver, rememorar e reescrever.

Vanêssa Freitas



[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Pau dos Ferros/RN, 8 de jul. de 2013.
[2] CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: A invenção do cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p 100.

[3] LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: ______. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão, et all. 2. ed. Campinas: UNICAMP, 1992. p. 525 – 539.
[4] BRASILEIRO, Antonio. Um dia tudo será memória. Disponível em: http://tvcultura.cmais.com.br/provocacoes/poemas-e-textos/pgm-636-um-dia-tudo-sera-memoria-29-10-2013.1 Acessado em 05 de dez. de 2013, às 7h.

sábado, 29 de março de 2014

DA SÉRIE: CURIOSIDADES SOBRE AS "TRÊS MARIAS DA BARRAGEM" - A VIDA ADULTA (PARTE III)

Em contrapartida a este comportamento tão identitário, tão próprio e peculiar, as três irmãs foram influenciadas por um de seus irmãos, o José, que por freqüentar a Igreja Mundial do Poder de Deus, conseguiu convencê-las de que lá seria um ambiente agradável para elas freqüentarem:

Com esse movimento todinho que não queriam ver gente, o José, irmão delas conseguiu convencer e trazer elas pra Igreja, e elas vem toda terça-feira, religiosamente. Elas vinham na sexta-feira, mas deixaram pra vir na terça porque é o dia que tem a reunião da Igreja. [...] Eles fizeram uma lavagem cerebral na cabeça delas e elas são apaixonadas e vem toda terça-feira[1].

O fato das três mulheres romperem com esse estigma de não se aproximar, fisicamente, das pessoas já é bastante interessante, porém, saber que elas passaram a frequentar uma Igreja evangélica torna a pesquisa bem mais instigante, afinal, quando crianças, elas não quiseram se confessar com o Padre por ser uma figura masculina, e também, por não demonstrarem muita crença (ou crença alguma) nas orações da Igreja Católica.[2] Além disso, já depois de adultas, rejeitaram a presença do Padre quando uma das donas das casas que elas pedem mantimentos o convidou para conhecê-las e tentar ajudá-las:

Mamãe com que trouxe Padre Francisco aqui, porque queria fazer por onde ajudar a elas a terem documentos pra aposentá-las. E ai, um dia ela conversou com o Padre Francisco, ai ele disse que não conhecia as três e que tinha muita vontade de conhecer, porque muita gente já tinha falado delas. Ai mamãe disse que nas terças-feiras, de 6h30min às 7h da noite elas estão passando aqui. Aí o padre veio e ficou esperando [...] Quando elas foram chegando ai mamãe falou que o padre quer conhecer vocês. Ai pronto assustou elas; foram embora. Isso já faz uns sete anos, mais ou menos. [3]


Então, participar de reuniões religiosas, tendo como líder um Pastor, ou seja, uma figura masculina, já demonstra a mudança comportamental e crédula destas mulheres, que antes diziam que não precisava rezar[4] e agora afirmam que “Deus é quem cura”.[5]
Assim, todas as terças-feiras elas se deslocam a pé do Sítio Alencar à cidade de Pau dos Ferros; “elas saem de casa de tarde, pra chegarem aqui [cidade] já à noite, pra não andar na rua de dia.” [6] Como são pedintes, fazem o mesmo percurso, sempre, passando nas casas de alguns conhecidos, pessoas que elas já estabeleceram um certo vínculo, para pedir mantimentos e, em cada casa se repete o mesmo pedido há muitos anos, como conta Regilma Freitas:
Elas passam aqui há muito tempo, há uns dez anos que elas frequentam aqui em casa. No início elas tinham medo do claro, só ficavam no escuro; passavam ali, entravam ali no beco e iam lá pra traz, ficavam numa casinha que tem ali atrás, no escuro. [...] Depois elas foram se acostumando com a gente e já entram em casa do jeito que ta aqui, no claro, há uns quatro anos mais ou menos. [...] Elas pedem massa de milho, açúcar, café e sabão, são as coisas que elas mais pedem. [...] Elas trazem ovos caipira pra trocar com açúcar ou outra coisa. [...] Tem uma que conversa mais que as outras. [...] A passagem delas é rápida: elas entram, vão ali à cozinha; o que tiver elas pedem, mas se não tiver também o que elas querem vão embora. Cada uma quer o seu separado, porque se eu der o açúcar pra uma, ai ela já fala pra outra “olhe que ela me deu”. Mas às vezes eu não dou igual, dou a massa de milho pra uma, o açúcar pra outra e o sabão pra outras e mando elas dividirem, ai elas botam cada uma em sua sacola e vão embora. [7]

Foto 2: As “Três Marias da Barragem” caminhando pelas ruas de Pau dos Ferros/RN. Fonte: Blog Nossa Pau dos Ferros.

Nesta foto fica visível a maneira que elas se vestem, com roupas pretas, sempre com toalhas ou lençóis, de qualquer cor ou estampa, agregados à roupa para cobrirem os rostos; caminham por ruas escuras e com pouca movimentação, para não serem notadas (à exceção da avenida principal da cidade), sempre juntas.
Estas andanças, trajetórias traçadas e seguidas rotineiramente, nos remetem à conceituação dos espaços, da maneira ue as ruas, veilas e calçadas são exploradas por estas mulheres. Assim sendo, Certeau diz que:

Os lugares são histórias fragmentadas e isoladas em si, dos passados roubados à legilibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali antes com histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim, simbolizações conquistadas na dor ou no prazer do corpo. [8]


Após esta rotineira passagem pela cidade, o destino é a Igreja. Então, buscamos conversar com o Pastor Veranilton Azevedo, da Igreja Mundial do Poder de Deus para saber como elas se comportam neste ambiente público:

Houve até uma surpresa pra nós, porque quando observamos toda Igreja, notamos que tinha três pessoas unidas e, até então, elas utilizam lençol pra se cobrir. Isso até despertou a nossa atenção, porque não é de costume a gente ver pessoas com esse comportamento. [...] pra muitos foi uma surpresa, porque elas não são de estar na sociedade, são pessoas que se isolam e, foi uma surpresa para toda a Igreja. Teve até um dia que tiver que chamar atenção de algumas pessoas, porque as pessoas não paravam de olhar pra elas e isso foi criando nelas um constrangimento; então pedimos ao corpo de obreiros pra orientar essas pessoas, pra não ficarem olhando, porque elas são pessoas como nós, porém, com seu modo de cultura.

Nesse sentido, é praticamente impossível falar de seres marginalizados sem mencionar a questão do pré-conceito, bem exposto por Duval Muniz [9] como um conceito prévio, uma descrição sem qualquer esforço para entender e conhecer o outro; nesse sentido, se encaixam os diferentes olhares sem conhecimento apropriado da sociedade pauferrense lançados sob as reações provocadas pelas “Três Marias da Barragem” a partir do comportamento diferenciado dessas mulheres.

Elas não são pessoas de conversar muito, são pessoas que são na delas, caladas, então até pra você ter um diálogo com elas, você tem dificuldade. [...] Elas vêm, assistem a reunião, nós não interferimos ou forçamos elas a dialogar, conversar com as pessoas; simplesmente as deixamos à vontade. [...] Porque se elas vêm pra cá, que é uma raridade estarem em publico [...] isso só pode ser Deus que colocou no coração delas o desejo de participar. [...] Durante as reuniões elas ficam paradas, caladas, mas elas ouvem [...], elas participam, mas é do jeito delas. [...] Toda reunião elas sentam naquele mesmo local, é tanto que nós já aprendemos isso e quando senta alguém nas cadeiras que elas sentam, nós pedimos educadamente, que ceda aquele lugar, que é como se elas não sentassem ali era fossem um peixe fora d’agua. [10]


Freqüentar esta Igreja tem mudado bastante o pensamento destas “Marias”, pois além de passarem a ter fé, elas disseminam essa crença por onde passam, buscando atrair pessoas que elas conhecem para a Igreja:

Agora, depois que mamãe adoeceu, elas sempre perguntam se ela ta bem e mandam que eu leve elas pra Igreja Mundial; elas freqüentam a Igreja Mundial, ai tem uma que diz “mulher, leve sua mãe pra Igreja Mundial que ela vai ficar boazinha”. Sempre, sempre elas dizem. [11]


Esta relação que elas fazem entre a cura e a Igreja, está ligada à reunião que elas freqüentam nas terças-feiras na Igreja Mundial do Poder de Deus, que é a noite da cura, noites estas que elas não faltam na Igreja:

Elas são pessoas que não faltam. Toda terça-feira nós temos uma reunião chamada de “O milagre Urgente”, onde oramos forte, clamamos e pessoas realmente se curaram; testemunhos são dados e, talvez pelos testemunhos elas tenham sentido tocadas por Deus e elas não têm faltado. [12]

Vanêssa Freitas


[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[2] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[3] FREITAS, Maria Regilma de. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de 2013.
[4] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[5] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Pau dos Ferros/RN, 8 de jul. de 2013.
[6] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Pau dos Ferros/RN, 8 de jul. de 2013.
[7] FREITAS, Maria Regilma de. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de 2013.
[8] CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: A invenção do cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 189.
[9] AZEVEDO, Veranilton. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN. 24 de nov. de 2013.
[10] AZEVEDO, Veranilton. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN. 24 de nov. de 2013.
[11] FREITAS, Maria Regilma de. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de 2013.
[12] AZEVEDO, Veranilton. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN. 24 de nov. de 2013.

sexta-feira, 28 de março de 2014

DA SÉRIE: CURIOSIDADES SOBRE AS "TRÊS MARIAS DA BARRAGEM" - A VIDA ADULTA (PARTE II)

As “Três Marias da Barragem” caminhando pelas ruas de Pau dos Ferros/RN. Fonte: Blog Nossa Pau dos Ferros.

Ene Pinheiro relata que muitos dias depois, Lilita voltou a freqüentar sua casa, agora acompanhada das outras duas irmãs, Antônia e Helena:

Lilita já mais socializada comigo, mas as outras não... de cabeças amarradas, um pano preto na cabeça [...] eu sabia o dia que elas vinham e dava aquela janta e algumas coisas pra elas levarem... elas comiam sempre na calçada, ficavam bem longe assim no escuro e comiam, muito complicadas pra comer, não é tudo que elas comem não, sabe? [...] mesmo depois de um tempo, Lilita era que conversava mais, as outras ficavam rindo; Lilita era quem pedia mais as coisas e perguntava se as outras queriam. [1]


Podemos destacar, então, certa liderança de Lilita em meio ao trio, principalmente por ela conseguir ser mais comunicativa, um pouco menos desinibida que as outras duas, que por sinal, são bem mais cuidadosas com a aparência do que Lilita:

Tem duas que são bem penteadinhas, parece que elas usam bem muito óleo no cabelo, que o cabelo é bem arrumadinho, mas tem uma que é toda arrepiada, que não se cuida muito; as outras tem cuidado pelo menos com o cabelo, deixando arrumadinho. [...] Uma me disse uma vez que usa banha de galinha no cabelo e a outra disse que não gosta de usar nada no cabelo. [...] Ai eu fico brincando com Lilita, dizendo pra ela passar o óleo, pra ficar bem arrumado, porque as outras duas até prendem o cabelo. [2]


Em meio aquela situação complicada na qual estas três mulheres viviam, Ene conta que partiu dela o interesse por conseguir uma aposentadoria ou alguma espécie de benefício financeiro para as três irmãs, tendo em vista que elas viviam dos mantimentos doados pelas pessoas nas quais elas tinham um certo contato:

A iniciativa partiu de mim, não foi de ninguém da família, não. (...) Mas não podia falar em aposentaria, não, desses documentos, não. Eu disse que esses documentos eram pra conseguir cadastrá-las pra pegar a feira, porque elas botaram na cabeça, principalmente Lilita, que a mãe só morreu porque se aposentou. [3]


Há, então, mais uma demonstração de que estas mulheres desenvolveram crenças e maneiras de enxergar o mundo ao redor de uma maneira bastante peculiar, baseada em fatos recorrentes que, coincidentemente ou não, fazia sentido de alguma maneira, algo ilustrado com a aproximação temporal entre a aposentadoria da mãe e sua morte. Logo, entenderam que a aposentadoria, algo desconhecido para elas, era sinal que a morte estava se aproximando e, por mais que estas mulheres tenham uma grande dificuldade em viver em meio a uma sociedade de padrões, temiam a morte e, por isso, queriam distanciar-se de algo que pudesse provocá-la.
Devido a aproximação de Ene com as “Três Marias da Barragem” e em busca de obter a aprovação da aposentadoria para Lilita (por ser a mais velha), Ene conseguiu levar o médico até a casa delas, para que ele pudesse atestar a necessidade do benefício, relatando detalhadamente que:

A casa delas é uma casa grande de um tio, que elas moram, só que é assim: da sala pra frente é o “palácio de Valdir”, como se diz, que é esse que é o “melhor”, que tem televisão, ele tem uma moto; ele cozinha dentro desse quarto. Lá são 5 pessoas, são 5 panelas. Elas não cozinham pra todos, é tudo separado, no meio do tempo, as trempes no meio do tempo. [...] Tem outro quarto que é do Zé [...]. Ai tem um quarto grande, que ao invés delas ficarem organizadas nas redes, elas pegaram umas estacas e enfiaram fazendo um corredor, que é cheio de porcaria – fogão velho, sacos pendurados cheios de vasilhas velhas e molambos. [...] Elas não tinham geladeira. [...] A Lilita cria 60 gatos, vive com esses gatos em cima dela. [1]

Essa maneira de organizar o espaço em que vivem nos mostra que, apesar de demonstrarem união, por andarem sempre juntas, elas preservam a individualidade uma da outra, pois cada uma tem sua comida separada, seu espaço para cozinhar e para dormir, e que até certo ponto são respeitadas pelos irmãos que possuem uma maneira de viver e de conviver com a sociedade bem diferenciada da que elas desenvolveram. Estas são as chamadas por Certeau de “estratégias”, ou seja, maneiras de burlar os padrões, como ele define:

A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças [...]. Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro. [2]


Então, ao chegar com o médico na casa delas, Ene conta que a atitude das irmãs não poderia ter sido diferente:

Ai quando o médico chegou elas correram; não deu tempo elas correrem pros matos... quando chega gente lá e elas escutam o barulho do carro elas correm. [...] Correram pra dentro do corredor e ficaram escondidas; o médico só conseguiu ver Lilita, as outras duas se esconderam mesmo. [...] quando o médico viu a situação, disse q ia dar o atestado definitivo. [3]

Este comportamento nos remete ao passado destas mulheres, quando ainda viviam a infância no Sítio Sanharão e não permitiam serem vistas por quem chegasse à casa da família delas, por ordem dos pais, principalmente da mãe, Dona Celcina, [4] demonstrando, assim, que este costume de correr e se esconder quando chegasse alguma visita foi interiorizado por elas, gerando um comportamento anti-social e atípico, como se tivessem medo do que vem de fora, do estrangeiro, do desconhecido, tornando-as excluídas da sociedade vigente por vontade ou até mesmo por um trauma gerado na infância, que permanece até os dias atuais.  Tanto que esta atitude, de não querer entrar em contato com pessoas desconhecidas, também foi relatado por Regilma Freitas:

Às vezes, quando tinha gente de fora aqui em casa, elas ficavam escondidas ali por trás do carro, na área que sempre fica escura, ai tem uma que diz “não, mulher, vá buscar [os mantimentos], tem gente aí, num vou entrar não”. Ai eulevo e entrego as coisas pra elas. [5]

Em conseqüência disso, ou seja, dessa rejeição ao que é desconhecido, gerou-se uma identidade muito particular, na qual Sodré trata como

Um complexo relacional que liga o sujeito a um quadro contínuo de referencias, constituído pela intersecção de sua história individual com a do grupo onde vive. Cada sujeito singular é parte de uma continuidade histórico-social, afetado pela integração num contexto global de carências (naturais, psicossociais) e de relações com outros indivíduos. [6]


Vanêssa Freitas.

[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[2] CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: A invenção do cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p.  99.
[3] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[4] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[5] FREITAS, Maria Regilma de. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de 2013.
[6] SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros – Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.



[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[2] FREITAS, Maria Regilma de. Entrevista concedida à autora. Pau dos Ferros/RN, 23 de nov. de 2013.
[3] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.

quinta-feira, 27 de março de 2014

DA SÉRIE: CURIOSIDADES SOBRE AS "TRÊS MARIAS DA BARRAGEM" - A VIDA ADULTA (PARTE I)




Da esquerda para a direita: Lilita, Antônia e Helena – As “Três Marias da Barragem”. Fonte: Arquivo pessoal de Ene Moreira Pinheiro. 

Já adultas, a família – mãe, pai, irmãos e as “Três Marias” – morou um tempo no Sítio Barragem, município de Pau dos Ferros/RN, passando antes por outras zonas rurais, como o Sítio Maniçoba, também município de Pau dos Ferros/RN. Ao residirem no Sítio Barragem, a população pauferrense passou a tomar conhecimento sobre a existência destas três mulheres, pois marcavam presença nas ruas da cidade durante as noites de sexta-feira, sempre com seus rostos cobertos por um lençol ou toalha, pedindo mantimentos à alguns moradores da cidade e retornando à zona rural antes do nascer do sol. Após a morte do senhor Raimundo de Souza Nascimento, mais conhecido por Raimundo Palheta, pai das “Três Marias”, a família passou a residir no Sítio Alencar, município de Pau dos Ferros.
Segundo os relatos de uma moradora e grande conhecedora da vida destas três mulheres, Ene Moreira Pinheiro[1], durante certo tempo, as irmãs pararam de freqüentar a cidade e, de maneira surpreendente, para aqueles que imaginavam que elas haviam morrido, Maria da Conceição Nascimento, mais conhecida por Lilita, tornou a caminhar na cidade durante a noite. Certa vez, conta Ene Pinheiro, Lilita apareceu sozinha:

Ela ficava no escuro, sentada na calçada [...] aí eu ia, pegava um copo de leite e ia a procura dela; ai eu chegava lá e ela com a cara coberta, ai eu dizia “pegue mulher o copo de leite” e ela dizia “deixe ai”, ai eu deixava. Ai começou essa rotina, uma vez por semana.[2]

Lilita, por sentir-se segura e à vontade ao falar com Ene, devido ao contato semanal, confessou-lhe que estava sofrendo com muitas dores:

Ela se aproximou e disse “mulher, eu to tão doente”, isso ela com uma barriga bem grande, ai eu perguntei se era um menino, se ela tava grávida, mas ela dizia “não, né menino não, eu tô muito doente”, ai eu disse “pois venha amanhã de dia que eu levo você no médico”, mas eu esperei e ela não veio.[3]

Ou seja, apesar dar dores, Lilita não abandonou seu costume de ir à cidade apenas durante a noite. Então, na semana seguinte, ela retornou à casa de Ene, que a levou ao hospital, onde foi diagnosticado que ela tinha um mioma e precisava se submeter a uma cirurgia, processo este que necessitava de exames prévios:

Eu disse pra ela que ela ia ter que fazer uns exames e precisava ficar na cidade naquela noite, que dormiria na minha casa. Ai eu fui, marquei os exames no laboratório, mas ela disse que não ia ficar, mas a vontade de ficar boa era muito grande, acho que ela sentia muita dor e findou dizendo que ficava; ai eu disse “pois você vai dormir aqui em casa”, ai ela disse “não, eu fico aqui no muro”. Não entrou em casa de jeito nenhum [...] ela também não dormiu nessa noite, não![4]

Este comportamento arredio e de exclusão caracteriza ações comportamentais tidas como marginalizadas, conceito explorado por Michel Foucault [5] ao descrever estes seres enquanto “infames”, excluídos, discriminados, diferentes em relação padrão vigente da sociedade, que vivem à margem, tanto no sentido espacial, de lugar habitacional, tendo em vista que sempre moraram em locais distantes do centro da cidade, ou seja, longe do foco das praticas cotidianas vigentes, o que compreende a zona rural e/ou à bairros periféricos; quanto fora do convívio social pauferrense, fugindo das regras comportamentais impostas pela maioria e das relações sociais cotidianas:

Todas essas vidas destinadas a passar por baixo de  qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com freqüência enigmáticos – a partir do momento de seu contato instantâneo com o  poder. De modo que é, sem dúvida, para sempre impossível recuperá-las nelas próprias, taiscomo podiam ser “em estado livre”; só podemos balizá-las tomadas nas declamações, nas parcialidades táticas, nas mentiras imperativas supostas nos jogos de poder e nas relações com ele. [6]

Com o resultado dos exames, diagnosticou-se uma anemia muito forte em Lilita, impedindo-a de retirar o mioma, pois antes ela deveria ser internada para tomar algumas bolsas de sangue e, só assim, ter condições de entrar no processo cirúrgico, realizado pelo Dr. Etelânio Figueiredo.
Ao internar Lilita, foi necessário que Ene providenciasse algumas camisolas pretas, pois esta era a única cor que as “Três Marias” usavam. Neste sentido, já é possível fazer uma comparação entre a infância/adolescência destas irmãs e a vida adulta, pois um costume havia se modificado: quando crianças/adolescentes, as “Três Marias” gostavam de usar roupas espalhafatosas, com muitas cores e estampas, porém, talvez como uma forma de luto à morte do pai, ela haviam passado a usar apenas preto, tanto nas roupas, quanto nas sandálias e isso perdurou até após a morte da mãe delas, a senhora Celcina Nonato Costa, que faleceu em meados de 2005/2006, logo após a cirurgia de Lilita:

A mãe delas estava doente na casa de um tio, então, quando Lilita saiu do hospital, eu pedi para ela ficar na casa desse tio, porque a mãe já estava lá, ia ter um convívio melhor [...] Pois quando ela passou uns quatro dias na casa do tio dela, a mãe dela piorou... sei que quando procuraram ela, ela havia fugido, cirurgiada [...] mas a mãe dela disse que ela tinha ido pra casa, tinha quase certeza. E coincidiu: ela saiu de casa de manhã, quando foi de noite a mãe dela morreu. [7]


Nota-se, nesse sentido, que excluir-se da sociedade ou até do convívio de pessoas conhecidas não é apenas uma maneira que elas desenvolveram de viver suas vidas, mas de introspecção, de reclusão por medo de encarar certas situações complexas, como foi a morte da mãe, mais um motivo para que as “Três Marias da Barragem” sumissem por um bom tempo das ruas noturnas de Pau dos Ferros.

Vanêssa Freitas




[1] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[2] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[3] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[4] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.
[5] FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: ______. O que é um autor? Lisboa: Presença, 1994.
[6] FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: ______. O que é um autor? Lisboa: Presença, 1994.
[7] PINHEIRO, Ene Moreira. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 8 de jul. de 2013.  

quarta-feira, 26 de março de 2014

DA SÉRIE: CURIOSIDADES SOBRE AS "TRÊS MARIAS DA BARRAGEM" - A ADOLESCÊNCIA


Depois de alguns anos, já na adolescência das irmãs, onde a mais velha, Lilita, contava com seus 15 anos de idade, aproximadamente, a senhora Maria Margarida de Paiva Fernandes, educadora e evangelizadora daquela zona rural, começou a freqüentar a casa de Raimundo e Celcina e os convenceu de permitirem a participação dos filhos do casal nas aulas de alfabetização que a própria Dona Margarida ministrava em sua casa, para as crianças daquela zona rural. E, depois de muito esforço e de longas conversas, as irmãs Lilita, Antonia e Helena, juntamente com o irmão José, passaram a ir às aulas.
Dona Margarida conta que:

Não abriam a boca durante a aula, elas vinham com um pano amarrado aqui na cabeça e às vezes elas queriam olhar para o outro ai dizia, olhava assim por debaixo do pano e dizia “pia onde tá fulano”,era assim, ai cobria de novo. Elas aqui, só escreviam quando os alunos saiam. [...] Eram uns alunos, assim, de um modo diferente; acho que se existisse especialização naquela época elas eram de aulas especiais. [...] Trabalhava muito mais com eles quatro, porque eu ensinava a turma, mas enquanto a turma estava toda com a gente, as três horas, elas não olhavam pra mim, nem pra nada, era tudo ali, encostadas na parede, só entre elas [...] no inicio tiravam a atenção dos outros, ai se acostumaram, não ligavam nada, não. [...] Quando a outra turma saía era que eu ia dar atenção a elas. [...] Só faziam as atividades em casa, mas traziam certo [...] conseguiam aprender, eles eram inteligentes, muito! Aprenderam a escrever, fazer o nome delas, do pai, da mãe [...]. [1]


D. Margarida, professora das "Três Marias" e entrevistada durante a pesquisa, ladeada por seu esposo, Sr. Expedito Fernandes. 


Nesse sentido, torna-se claro que Lilita, Antonia e Helena não tinham nenhum bloqueio mental relacionado a questão da aprendizagem, pois conseguiam aprender o que era transmitido pela professora durante as aulas, mesmo que não participassem, comentassem ou, até mesmo, mostrassem seus rostos durante a aula, pois mantinham-se com o rosto coberto durante as três horas de aula e sentavam-se em bancos isolados do restante do grupo, conseguindo colocar em prática o aprendizado em casa, com a ajuda e a compreensão de Dona Margarida, que entendia o comportamento delas e que não forçava nenhum tipo de mudança ou de aproximação que elas não permitissem, por isso a aprendizagem se deu aos poucos, de maneira gradual e sem muitas cobranças, o que não significa que ela não cumprissem os prazos estipulados pela professora, que “passava a lição na sexta-feira pra elas trazerem segunda e elas traziam bem direitinho; agora, elas não faziam a pontuação direito, mas elas liam, eram bem desenvolvidas pro comportamento delas”.[2]
Para agradá-las e mantê-las sempre por perto, freqüentando as aulas, e tentando construir certa amizade com elas, Dona Margarida diz que, certa vez costurou umas vestimentas para as três irmãs:

Quando elas estudavam aqui, elas usavam vestido de uma tira amarrada num canto, outra pra outro canto, e era aquela confusão, ai eu fui, peguei, comprei um tecido e fiz um vestido pra cada uma, fiz uma camisa para o Zé e arrumei uma calça pra ele. Ai elas saíram daqui, era alegria grande, numa carreira: “pi, pi a besteira”. Ai elas vestiram. Quando foi no outro dia, pense... cortaram o vestido todinho, botaram uns pedaços de outro pano, uma tira lá embaixo, outra lá em cima, aqueles babados, menina! E é porque eu fiz os vestidos bem compridos mesmo, como elas gostavam, mas elas não foram mulheres pra dizer assim: muito obrigada, ficou bonito. Não... A mãe dela foi quem veio me agradecer. [3]


Esta reação delas com os presentes que ganharam, mostra a dificuldade que elas deveriam ter em lidar com normas, com padrões, com o tipo de organização social e comportamental que tinham que conviver, algo que era refletido, também, na maneira de se vestir, pois cada uma gostava de criar seu próprio vestido, de customizá-lo, de diferenciá-lo dos demais, uma maneira de transgredir as regras da sociedade, mesmo inconscientemente. Ou seja, pode-se analisar este tipo de comportamento através dos estudos de Foucault[4] ao abordar a sociedade de controle, permeada por padrões, vigilância e punições, ou seja, transgredir as regras, mesmo que de maneira inconsciente e nada intencional, é correr o risco de serem punidas pela sociedade em geral por meio da exclusão e da rejeição. Porém, o que fica mais claro ao considerarmos este comportamento diferenciado das três irmãs é que elas, desde muito cedo, desenvolveram o que Michel de Certeau[5] chama de táticas e estratégias para conviveram com as pessoas que as cercavam, pois por mais que pareçam estáticas, pelo fato do cotidiano remeter-se de alguma forma a rotina, as práticas cotidianas são compostas por “estratégias” individuais e/ou coletivas a fim de realizar atividades recorrentes no dia-a-dia, estas podem ser padronizadas, ou seja, há uma repetição de um modelo (reafirmado por meio dos discursos) a ser seguido para que o indivíduo seja inserido no âmbito social; ou, esses padrões podem ser rompidos, gerando novas “táticas” para lidar com o cotidiano.

Vanêssa Freitas



[1] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[2] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[3] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 17 de ago. de 2013.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
[5] CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: A invenção do cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

terça-feira, 25 de março de 2014

DA SÉRIE: CURIOSIDADES SOBRE AS "TRÊS MARIAS DA BARRAGEM" - A INFÂNCIA

O cotidiano daqueles que vivem de maneira diferenciada da sociedade têm sido algo cada vez mais abordado pela historiografia atual, isso porque essas pessoas aparecem no meio social justamente por serem condenados como anormais, marginais, se tornando objetos de um discurso institucionalizado, que retrata esses seres como infames, mas, de qualquer forma, faz com que eles não passem despercebidos diante da sociedade. Nesse sentido, Maria da Conceição do Nascimento, Antônia Souza do Nascimento e Helena Souza do Nascimento se encaixam perfeitamente nos parâmetros dos “marginalizados”, tão trabalhados por Foucault. Assim, buscamos compreender a maneira que estas mulheres viveram na infância, na adolescência e hoje, na vida adulta, traçando um perfil desmistificador da imagem dessas mulheres por meio de uma espécie de biografia problematizada, utilizando como principal fonte a oralidade, por meio de entrevistas, seguida por fotos de acervos pessoais dos entrevistados, para que seja possível compreender de que maneira a imagem das “Três Marias da Barragem” é construída pelas vozes dadas à memória dos entrevistados, ou seja, como a sociedade pauferrense encara a existência destas mulheres permeando os lugares e não-lugares desde a infância delas até os dias atuais. Então, a partir de hoje, convidamos vocês, queridos leitores, a acompanharem um pouco da trajetória dessas 3 mulheres que permeiam o cotidiano e o imaginário pauferrense. 
A senhora Maria Margarida de Paiva Fernandes [1] conta que estas três irmãs, juntamente com os irmãos José e Valdir, viveram toda infância na zona rural da cidade de Encanto, no mesmo sítio onde nasceram, porém, desde muito cedo apresentaram um comportamento diferenciado das crianças que ali moravam, pois não costumavam sair de casa com freqüência, não brincavam com outras crianças da redondeza, nem costumavam conversar com pessoas que não fizessem parte do seu seio familiar.
Dona Margarida, que conheceu a família, conta que todos possuíam um comportamento estranho – muito introspectivos, tímidos e não costumavam ter laços de amizade muito arraigados com ninguém. Raimundo de Souza Nascimento, o patriarca da família, trabalhava de aluguel, ou seja, vendia seus serviços braçais aos fazendeiros da região, para dar sustento a sua família, enquanto sua esposa, Celcina Nonato Costa, fazia trabalhos domésticos, tanto em casa, quanto nas casas das vizinhas que solicitavam seus serviços, mas o trabalho fora de casa não fez com que eles mudassem a maneira sempre quieta e silenciosa de se comportar, algo que refletiu na criação e no comportamento de todos os filhos, principalmente nas três irmãs, que desenvolveram um estilo de vida bastante peculiar, ou seja, elas desenvolveram uma identidade social diferenciada da maioria, conceito este trabalhado por Durval Muniz significando-o como maneiras nas quais os indivíduos se percebem dentro da sociedade em que vivem e a forma que percebem os outros que estão ao seu redor, ou seja, o modo que as “Três Marias da Barragem” se inseriram, ou não, na sociedade em viveram a infância, colocando-se sempre como o diferente e excluindo-se das atividades cotidianas daquela população rural.
Exemplo disso é que ao receberem visitas em casa, mesmo de pessoas conhecidas, as meninas corriam para dentro do quarto ou da cozinha, para se esconderem das pessoas, para que ninguém as visse, como se apresentasse medo ou vergonha, de algo ou de alguém, não importando se fosse homem ou mulher, mas no caso de homens, o receio era ainda maior. Também por esse motivo, Maria da Conceição (mais conhecida por Lilita), Antonia e Helena sempre andavam com um pano cobrindo a cabeça, para que ninguém visse seus rostos ao andarem pela vizinhança; elas gostavam de vestir vestidos bem longos e coloridos, feitos pela mãe de retalhos de tecidos, e nem sempre usavam sandálias, andavam com os pés descalços sem nenhum tipo de preocupação; sem conversar nem se aproximar de alguém, mantinham-se observadoras e dialogavam entre si sobre os acontecimentos do cotidiano, algo que muitos dizem ser fruto do pensamento tradicional e amedrontado da mãe, que não gostava que as filhas tivessem contato com outras pessoas que não fossem na família, por motivos até então desconhecidos. 


Vanêssa Freitas



[1] FERNANDES, Maria Margarida de Paiva. Entrevista concedida a autora. Encanto/RN, 17 de ago. de 2013. 

quarta-feira, 19 de março de 2014

A importância de se ferrar, com a “ribeira”, os animais de uma propriedade rural


A “ribeira” é uma marca – carimbo ou ferro - registrada em cartório, que identifica os animais de uma determinada região, de uma propriedade rural, ou de uma família. Geralmente é ferrada na perna esquerda do animal, oposta, portanto, à marca do ferro de determinado proprietário, uma vez que esta é colocada na perna direita.

A família Diógenes mantém, há mais de um século, uma famosa, conhecida e tradicional ribeira. São quatro “C” em formato de cruz e emborcados - (há alguns que usam os “C” voltado para a direita, outros para a esquerda ou mesmo para cima), ferrada na perna esquerda dos animais, e que identifica - marca, ferra os bovinos, eqüinos e muares pertencentes a qualquer componente da nossa família.

Qualquer animal que apresente os quatro “C” na perna esquerda, pertence a um Diógenes, ou a ele pertenceu, caso referido animal tenha sido vendido.

A propósito, tenho um episódio a contar, ocorrido na década de 60, que diz bem - não somente da importância de nós Diógenes ferrarmos o rebanho com tal ribeira - como, e principalmente, do conceito e do reconhecimento da citada "marca" perante a região nordeste:

O meu pai comprou uma propriedade rural aqui no agreste potiguar - mais precisamente no "Vale do Japecanga", município de Parnamirim - RN. Propriedade muito boa, com quase 500 hectares, com um rio perene (Japecanga) correndo por toda a sua extensão, constituída, em sua maioria, por terreno - paul - apropriado para o cultivo da cana de açúcar e com um engenho de rapadura prontinho, todo equipado, apto a funcionar. A essa fazenda ele, Licurgo Nunes, numa homenagem póstuma ao sogro, amigo e compadre Lafayete Diógenes Maia, denominou-a de "Engenho Lafayete".

Só que, no referido engenho, não havia animais - muares - suficientes para trabalhar no transporte da cana de açúcar do “eito” para o engenho. Em uma outra sua propriedade - Fazenda Galeão - distante dois kms da Cidade de Marcelino Vieira, ele mantinha um rebanho considerável de burros-mulos - proveniente do cruzamento de “égua com jumento de lote". São animais fortes e resistentes, haja vista que esse cruzamento genético resulta em animais de porte excelente, diferentemente daqueles resultantes da junção de jumentas com cavalos, pois estes são bem menores. Com esse rebanho todo de burros, resolveu, então, trazer, do Alto Oeste Potiguar para o Agreste, doze desses animais para auxiliar no citado trabalho de transporte da cana.

Esses animais vieram a pé, tangidos pelo vaqueiro à época, Anacleto Silvestre da Silva, filho do casal João Silvestre da Silva/Maria Vieira da Silva, gerentes da citada propriedade.

A viagem transformou-se em uma verdadeira epopéia, dado ao inusitado, bem como por ser empreendida por um vaqueiro inexperiente nesse tipo de evento, até mesmo porque ele não conhecia o percurso.

O Desembargador Licurgo Nunes, muito precavido, planejou toda uma estratégia para que essa “expedição” fosse bem sucedida; equipou o citado vaqueiro com mantimentos para a sua subsistência; numerário suficiente para fazer frente a qualquer despesa que fosse necessária, e um roteiro do percurso a ser transposto. Redigiu cartas de recomendação aos amigos proprietários rurais por onde ele iria pousar. Desnecessário lembrar que à época não havia a telefonia celular (essa grande descoberta do século passado, assim como não havia o benfazejo GPS, tão útil nos dias atuais).

No primeiro dia de viagem, percorrendo 40 kms, pousaria na Fazenda “Curralinho”, no município de Catolé do Rocha, PB, do amigo Dr. Severino Maia, e, para aquele amigo, redigiu uma carta informando da missão do vaqueiro, bem como pedindo apoio logístico para aquela empreitada. No segundo dia seguinte, na Fazenda ... e assim sucessivamente, até o último dia da turnê.

Dona Cristina, a minha mãe – uma Diógenes autêntica, prática e determinada - duvidava do êxito dessa empreitada.

Decorridos dez dias para percorrer os 400 kms que separam as duas propriedades rurais, chega, finalmente, o Anacleto - são e salvo - ao Engenho Lafayete, com os animais todos, sem nenhum atropelo, sem nenhum contratempo.

Faz-se necessário lembrar que o Anacleto cumpriu fiel e integralmente o roteiro pré-estabelecido, mantendo uma média de 42kms por dia, e que todos os proprietários rurais aos quais foram dirigidos pedidos de apoio o fizeram da melhor maneira, proporcionando ao citado vaqueiro e aos animais a melhor acolhida.

Três dias após a chegada desses animais ao destino, quatro deles – como se não tivessem “gostado” do novo “habitat”, “resolveram” voltar; fugiram, desapareceram. Parece que eles “conheciam” os versos famosos de Joaquim Manoel de Macedo, que diz:

“Um célebre poeta polaco, descrevendo em magníficos versos uma floresta encantada de seu país, imaginou que as aves e os animais ali nascidos, quando por acaso longe se achavam e sentiam que se aproximava a hora de sua morte, voavam ou corriam todos para morrerem à sombra das árvores do bosque imenso onde haviam nascido”.

Constatado o sumiço, formou-se um grande movimento no sentido de achá-los; equipes mobilizadas tentando localizá-los, anúncios em programas de rádios, etc., até que, decorridos quatro dias desse sumiço, os animais, passando por uma propriedade localizada após a Cidade de Santa Cruz, na Região do Trairí, (já caminhando no sentido inverso, rumo ao alto Oeste, “à procura da sombra das árvores do bosque imenso onde haviam nascido”) foram apreendidos – interceptados - pelo fazendeiro que os recolheu ao curral, e logo viu a ribeira ferrada na perna esquerda de todos eles. Conhecedor de que aquela ribeira era privativa da família Diógenes, e sabendo que na Cidade de Currais Novos havia um funcionário do Banco do Brasil (muito conhecido na região, pois era Fiscal da carteira agrícola da referida instituição bancária) – José Marcelino Neto - Deinho - que era casado com uma Diógenes (Maria Cristina Diógenes Nunes Marcelino) e, por coincidência, genro do Desembargador Licurgo Nunes, procurou-o e falou sobre os animais. Foi a “salvação da lavoura”, pois fez com que os muares fujões fossem recuperados.


                                                                                                            Licurgo Nunes Quarto

segunda-feira, 17 de março de 2014

CONVITE SECULT


ME BATEU UMA SAUDADE........

  
 Na vinda para o trabalho, percebi que chegou um parque infantil na cidade....lembranças antigas me afloraram instantaneamente: Em meados de 1970 o parque era instalado no espaço entre o obelisco e a igreja matriz, os brinquedos mais comuns eram, a roda gigante, o juju(espécie de carrocel infantil), a sombrinha(um carrocel para adultos e muito rápido), as canoas(que esfolavam a mão de qualquer um que quisesse atingir as alturas), o stand de tiro ao alvo(o alvo eram vidros de penicilina injetável vazios) e a cabine musical.
Em relação à cabine musical, as pessoas pagavam pela execução de determinada música e dedicavam das formas mais criativas possíveis, coisas do tipo: Essa música vai de fulano de tal para sicrano com mil graus de ódio ou de amor, o sentimento variava muito.
  O funcionamento das canoas, dependia da força dos pagantes e quem tivesse mão fina, com certeza sairia com muitos calos. Lembrei também dos vendedores de confeito com as mini confeitarias penduradas no pescoço, dos pirulitos Zorro, das vendedoras de rodelas de abacaxi, algodão doce, sucos articifiais de diversas cores e uma infinidade de guloseimas. Como éramos inocentes... comprávamos bexigas cheias de ar e saíamos felizes praça afora. Tempos bons aqueles.......
                               Israel Vianney