O mais temido dos cangaceiros estava acostumado a pilhar os povoados do sertão nordestino. Permaneceu invencível até o dia em que a resistência dacidade potiguar o obrigou a bater em retirada
Xico Sá | 01/12/2005 00h00
Uma festa de arromba promovida pelo Humaytá Futebol Clube fazia
ferver a sociedade de Mossoró naquela noite do 12 de junho de 1927,
véspera do dia de Santo Antônio. Foi quando começou a correr a notícia
de que Virgulino Ferreira, o temido cangaceiro Lampião, se aproximava da
cidade. Horas antes, ele e seu bando haviam atacado a vizinha vila de
São Sebastião (atual município de Governador Dix-Sept Rosado). Em poucos
momentos, todo o rigor daquele baile que exigia branco para os
cavalheiros e azul e branco para as damas amarfanhou-se e perdeu
graça, abalando o momento de glamour ostentado pela elite do sertão.
Mossoró era uma das mais prósperas cidades do Rio Grande do Norte. O
coronel Rodolfo Fernandes, o prefeito, já havia alertado, nos últimos
dias, sobre o perigo do ataque do rei do cangaço ao município. A
maioria dos habitantes, no entanto, parecia não acreditar. Tudo estava
tão tranqüilo que, no mesmo 12 de junho, Mossoró parecia mais preocupada
com o clássico entre os times de futebol do Ipiranga e Humaytá do que
com a possível chegada de Lampião às suas cercanias.
A partida de futebol transcorreu dentro da mais absoluta rotina. Já o
baile, por mais que alguns participantes e os diretores do clube
tentassem abafar as notícias vindas da vila de São Sebastião, foi tomado
pelo alvoroço e pelo medo. O apito da locomotiva da rede ferroviária
suplantava o pânico dos mossoroenses, narra o jornalista Lauro da
Escóssia, testemunha do acontecimento, no livro Memórias de um
Jornalista de Província. Os trens começavam a se movimentar, conduzindo
famílias e quantos quisessem fugir de Mossoró. Segundo ele, durante
toda a noite e na manhã seguinte, a ferrovia permaneceu
ininterruptamente agitada.
Na vila de São Sebastião, conforme as notícias que desmancharam o
baile do clube Humaytá, Lampião havia incendiado um vagão de trem cheio
de algodão e depredado a estação ferroviária. Havia também arrasado a
sede do telégrafo uma modernidade sempre combatida pelo chamado rei
do cangaço, na tentativa de impedir que o seu paradeiro fosse sendo
informado e ajudasse a polícia a persegui-lo.
Até as primeiras horas da manhã do dia 13, muita gente havia deixado
suas casas em Mossoró, que à época tinha cerca de 20 mil habitantes. O
temor ao famoso cangaceiro não era brincadeira. Duas mulheres em pleno
serviço de parto, conta Escóssia, foram retiradas em macas para a cidade
de Areia Branca, a quilômetros dali. Mas o esvaziamento não era só
fruto do pânico. A estratégia da prefeitura que havia conseguido ajuda
oficial em armas e munição mas não em combatentes era manter na
cidade apenas os habitantes que estivessem armados. Quanto mais vazio o
lugar, na avaliação do coronel Rodolfo Fernandes, maior a chance de
repelir o bando de cangaceiros.
Fazia tempo que Lampião planejava encarar o desafio de invadir
Mossoró. Seria a maior tentativa de rapinagem do bando, como conta o
historiador Frederico Pernambucano de Mello no seu livro Guerreiros do
Sol no qual defende a tese de que o cangaço era um meio de vida. Pouco
antes de chegar à cidade, Lampião enviou um bilhete chantageando a
prefeitura. Nele, pedia a quantia de 400 contos de réis para não atacar o
município, um valor pelo menos dez vezes superior ao que costumava
exigir em ocasiões semelhantes. Na tarde de 13 de junho, feriado de
Santo Antônio, ele e o bando já se encontravam nos arredores do
município potiguar.
Sem resposta ao primeiro comunicado, Lampião, já impaciente, bufando
de raiva, manda um segundo aviso. Os termos do bilhete, que consta nos
arquivos do jornal O Mossoroense (um dos mais antigos do país, com 133
anos de circulação), eram muito diretos e recheados de erros de
português: Cel. Rodopho, estando eu aqui pretendo é drº (dinheiro). Já
foi um a viso, ai pª (para) o Sinhoris, si por acauso rezolver mi a
mandar, será a importança que aqui nos pedi. Eu envito (evito) de
Entrada ahi porem não vindo esta Emportança eu entrarei, ate ahi penço
qui adeus querer eu entro e vai aver muito estrago, por isto si vir o
drº (dinheiro) eu não entro ahi, mas nos resposte logo. Ele assinava
Cap. Lampião.
O coronel Rodolfo Fernandes e seus homens disseram não a Virgulino,
para surpresa do mais temido cangaceiro de todos os tempos. A cidade
tinha o dinheiro, informou o prefeito. Mas Lampião teria que entrar para
apanhá-lo. Às 16 horas daquele dia 13, caía uma chuvinha fina e havia
uma neblina de nada sobre Mossoró. Foi quando os primeiros estampidos de
bala ecoaram.
Sangue e areia
Lampião tinha 53 cangaceiros no seu bando. Não imaginava, porém, que
iria enfrentar pelo menos 150 homens armados na defesa da cidade. O
repórter Lauro da Escóssia estava lá, vendo tudo de perto. Durante toda
a noite, a detonação de armas em profusão. Parecia uma noite de São
João bem festejada, escreveu em O Mossoroense. Mas as mulheres rezavam
para outro santo junino, o Antônio festejado naquele dia.
No ataque, Lampião perdeu importantes cabras de seu bando. Colchete
teve parte do crânio esfacelado por balas. E Jararaca, depois de
capturado, foi praticamente enterrado vivo (veja quadro na pág. 48). Em
menos de uma hora após o início da luta, o capitão do sertão outra das
alcunhas dadas ao célebre cangaceiro sentiu que dominar a cidade
seria praticamente impossível. Ordenou então a retirada da tropa, para
evitar a perda de mais homens e não manchar ainda mais sua reputação. A
partir desse momento a estrela do bando lentamente passaria a brilhar
cada vez menos, escreveu o historiador Pernambucano de Mello.
O mito do Lampião invencível caíra por terra, o que reanimou a força
policial, que passou a enfrentar o rei do cangaço com menos temor. Era o
começo do declínio da carreira de Virgulino. Por causa do desastre no
Rio Grande do Norte, as deserções no grupo foram consideráveis. Mossoró,
cidade conhecida por marcas pioneiras (como quando foi o primeiro
município brasileiro a admitir o voto feminino, em 1934), passaria
também à história por esse acontecimento que assombrou todo o Nordeste.
Até hoje, os filhos daquela terra se orgulham do feito de braveza ao
contar que seus antepassados botaram Lampião para correr. Os inimigos
do cangaceiro, entretanto, ainda teriam que esperar mais 11 anos pela
morte do capitão, assassinado somente em 1938, na chacina da gruta de
Angicos, em Sergipe.
Como morre um cangaceiro
Antes de ser executado,Jararaca riu com as lembranças de suavida ao lado de Lampião
Um dia depois do combate, quando o povo de Mossoró ainda temia o
possível retorno de Lampião sequioso por vingança, um dos principais
cangaceiros do bando, Jararaca, foi capturado se arrastando por um
matagal. O que se deu a seguir foi um roteiro tragicômico, conforme a
narrativa de Lauro da Escóssia, então repórter do jornal O Mossoroense. O
nome do pernambucano Jararaca era José Leite de Santana. Ele tinha
apenas 22 anos nos registros policiais, contudo, aparece com 26. Mesmo
com um rombo de bala no peito, conseguiu gargalhar durante uma
entrevista na cadeia. O cabra de Lampião dizia que era por causa das
lembranças divertidas do cangaço. Entre as memórias que ouviu do
preso, Escóssia descreve o dia em que Lampião teria invadido a festa de
casamento de um inimigo e, com seu próprio punhal, sangrado o noivo. Já a
noiva teria sido estuprada na caatinga pelos cabras do bando. Segundo o
relato de Jararaca, Virgulino também ordenou que os convidados de um
baile tirassem as roupas e dançassem um xaxado completamente nus. Vera
Ferreira, neta de Lampião, que hoje cuida das memórias do avô em
Aracaju, Sergipe, vê muito folclore nesse tipo de história. Nega, a
partir das suas pesquisas, que o cangaceiro tenha ordenado ou praticado
estupros (ela é co-autora do livro independente De Virgolino a Lampião,
que escreveu com o pesquisador Amaury Corrêa, dono de um dos maiores
acervos sobre o rei do cangaço, em São Paulo). Fato é que, na cadeia,
Jararaca virou atração pública na cidade potiguar. Quando já apresentava
alguma melhora do ferimento, mesmo sem ser medicado, ouviu que seria
transferido para a capital, Natal. Era mentira. Alta noite, da quinta
para a sexta-feira, levaram Jararaca para o cemitério, onde já estava
aberta sua cova, relata Escóssia. Pressentindo a armação, Jararaca diz:
Sei que vou morrer. Vão ver como morre um cangaceiro! O capitão Abdon
Nunes, que comandava a polícia em Mossoró, relatou dias depois os
momentos finais do capanga de Lampião: Foi-lhe dada uma coronhada e uma
punhalada mortal. O bandido deu um grande urro e caiu na cova,
empurrado. Os soldados cobriram-lhe o corpo com areia. Pelas
circunstâncias da morte, o túmulo de Jararaca virou local de romaria.
Até hoje as pessoas rezam e fazem promessas com pedidos ao cangaceiro
executado. Na terra do Sol, Deus e o Diabo ainda andam juntos.
Saiba mais
Livros
Guerreiros do Sol Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil,
Frederico Pernambucano de Mello, Girafa/Massangana, 2004 - É considerado
o mais completo e minucioso estudo sobre o tema. Ao contrário da
maioria dos historiadores, que romantiza Lampião, o autor mostra
evidências de que o rei dos cangaceiros era um bandido profissional,
sendo responsável, por exemplo, pelos primeiros seqüestros no Brasil.
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